quinta-feira, 10 de maio de 2007

O pão de cada dia... uma visão de A Cozinha

Introdução

Existe uma opinião generalizada de que Arnold Wesker é um dramaturgo simples que escreve peças simples – sendo “simples” um sinónimo paternalista de “óbvio” e “fácil”. A maior parte desta simplicidade é um cisco no olho do observador mais crítico, que ignora e adapta o que vê de forma a encaixá-lo nas suas próprias ideias preconcebidas, mas que estará cheio de sorte se conseguir preservar a sua própria simplificação sem ”enfiar” uma série de inconsistências no trabalho de Wesker durante esse processo. Uma análise mais cuidada das próprias peças sugere um quadro diferente: e esperamos, ao longo da discussão dos seus temas, caracterização, estrutura e linguagem, mostrar quão superficial e enganadora essa impressão de simplicidade é de facto – na verdade, é não só enganadora como irónica, pois um dos tópicos a que Wesker regressa mais consistentemente é a complexidade das escolhas e pequenos ajustamentos que todas as suas personagens pensantes têm de fazer. […]
Como disse Kenneth Tynan […] Wesker tem o poder de mostrar como as coisas são e, ao mesmo tempo, como poderiam ter sido. A complexidade que emerge desta rara capacidade é o que Wesker parece identificar quando diz:

"O optimismo é a arte não dos finais felizes e exclamações de alegria, mas do reconhecimento de verdades – verdades secundárias – quer sejam tristes ou não."

O pão-nosso de cada dia…

A Cozinha

Se bem que algumas das peças mais tardias de Wesker – nomeadamente Their Very Own and Golden City e Amigos – tenham tido vários rascunhos antes de serem encontradas no palco ou na edição, só A Cozinha foi realmente encenada e publicada em versões diferentes. Destas, a mais antiga e mais curta foi levada à cena no Royal Court enquanto espectáculo sem cenário no dia 13 de Setembro de 1959, e o texto revisto e mais substancial teve a sua estreia no dia 27 de Junho de 1961, numa carreira curta no mesmo teatro. É esta segunda versão que analisaremos aqui, uma vez que os acrescentos que Wesker fez – que tornam a peça cerca de 25% mais longa – amplificam em vez de modificar o que se possa pensar sobre a primeira. Seja como for, explicar exageradamente alguns pormenores textuais seria negar espaço às reais e substantivas complexidades da peça.
Aqui basta que apontemos as alterações mais importantes, das quais a primeira consiste numa elaboração mais pormenorizada do diálogo que apresenta a cozinha. Este, coloca a peça na “grande cozinha de um restaurante chamado Tivoli” – um local evidentemente concebido para produzir comida pré-fabricada e em grande quantidade – e apresenta os cozinheiros, que lentamente se deslocam para os seus blocos à medida que se aproxima a hora caótica de preparar o serviço do almoço. Então, à medida que o ritmo acelera rapidamente, Wesker passa a apresentar breves visões de empregadas e cozinheiros a trabalhar no máximo da força para acompanhar as exigências da sala de jantar, no que vem a ser um libretto da mais pormenorizada orquestração de idas e vindas que John Dexter criou em ensaio para este complicado mas muito necessário episódio. E, por fim, o contraste com todas estas idas e vindas sentido durante o “interlúdio” da peça, que – a cumprir o desejo do dramaturgo de ver a peça apresentada sem intervalo se segue de imediato à alucinada conclusão da primeira parte – é mais claro, visível e bem apoiado.
Até mesmo este interlúdio – que se dissolve lentamente no segundo acto, à medida que o mais calmo serviço de jantar se aproxima – se passa na própria cozinha, de onde alguns cozinheiros, demasiado exaustos ou demasiado longe de casa, não têm forças para sair para fazer uma breve interrupção. Pois “a cozinha está sempre aqui”. E é esta rotina quotidiana de trabalho enfadonho, alguns conflitos ocasionais e pausas esporádicas - uma rotina quebrada apenas por aqueles poucos momentos deliberadamente mais dramáticos que contribuem para o seu clímax violento – que é, de facto, a substância da acção. Neste sentido, A Cozinha é, a um tempo, realista e representativa: pois a capacidade de cada encenador de conter uma acção que se aproxima tanto do realismo documental no seu pormenor da rotina da cozinha numa forma que se aproxima do expressionismo – em particular na forma de relacionar as armadilhas esmagadoramente mecanicistas do local com as reacções humanas que provoca e a que dá forma – tem sido determinante para o sucesso da peça em espectáculo.

Já houve quem afirmasse que não existe em nenhum restaurante uma cozinha semelhante à do Tivoli de Wesker: e alguns dos pratos da evidentemente extensa ementa não são do género dos que esperaríamos encontrar numa linha de montagem gastronómica com o alegado ritmo de produção de duas mil refeições por dia. Mas mesmo que não concedamos a Wesker, com cerca de quatro anos de experiência em torno desses pratos, a possibilidade de ter mais razão neste ponto do que os seus críticos, dadas as hipóteses formais que estão na base da peça, a incongruência pouco importa. O Tivoli não é apenas uma cozinha: é, eponimamente, a cozinha – e um microcosmo, talvez, da sociedade que serve. Wesker comenta:

"Para Shakespeare o mundo podia ser um palco mas para mim é uma cozinha, onde as pessoas vão e vêm e não podem ficar o tempo suficiente para se compreenderem umas às outras, e onde as amizades, amores e ódios se esquecem com a mesma rapidez com que se fazem." [Introdução de A Cozinha]

E aqui, Peter, o cozinheiro alemão, sublinha a omnipresença do local

"Este… este manicómio está sempre aqui. Quando te fores embora, quando eu me for embora, quando o Dimitri se for… esta cozinha fica. E vai continuar depois de nós morrermos, pensa nisso. Trabalhamos aqui… oito horas por dia e, no entanto… não é nada. Ficamos com nada. Aqui… a cozinha, aqui… tu. Tu e a cozinha. E a cozinha não significa nada para ti como tu não significas nada para a cozinha."

Peter tem, de si, um temperamento naturalmente explosivo e errático: e isto, claro, é acentuado pela tensão das condições em que trabalha. Ao mesmo tempo, é tanto uma consequência “real” do calor e barulho da cozinha e funcionalmente adequado à peça que as características dos outros cozinheiros, sob pressão, sejam aumentadas em maior ou menor escala. “Todas as cozinhas, em especial durante o serviço, enlouquecem,” afirma Wesker, e até mesmo o menos assertivo dos cozinheiros que criou, Michael, é descrito como “marcado por uma certa loucura” que é comum a todos na sua profissão.
Tal como acontece com Michael, cada personagem, de Marango, o proprietário – para quem a cozinha é uma espécie de extensão umbilical de si próprio – até a Mangolis, o ajudante, e do Chefe até à nova empregada, tem a sua biografia no texto que antecede o diálogo da peça. Na realidade, todas as gradações e pequenas diferenças de carácter que Wesker especifica podem parecer, à primeira vista, supérfluas numa obra que tem por definição a ideia de que as condições impuseram, no mínimo, uma certa superficialidade, e no máximo, uma absoluta impessoalidade às relações entre as pessoas – uma peça em que, além do mais, nenhuma personagem para além de Peter entre as cerca de trinta que são referidas por nome na lista de personagens, é dramaticamente muito mais importante do que qualquer das outras.
[…]
Para o público as personagens só vivem dentro da cozinha – tanto mais que uma boa parte do seu tempo livre ocorre durante a tarde e, por isso, é também passada à sombra da cozinha ou na sua proximidade. A um tempo a cozinha exige e revela dramaticamente o tempo e as energias dos seus empregados, a estreiteza dos seus limites, criando uma imagem teatralmente muito viva, ensombra até mesmo as suas poucas recordações de qualquer actividade tida à margem dos seus dias e rotinas. Até mesmo a necessidade de mimar muita da actividade prática do sítio [i.e. preparação e confecção de alimentos] se transforma numa virtude positiva neste aspecto, uma vez que aqui o efeito é de distanciamento, aumentando assim a consciência da natureza das operações que são, tanto quanto vemos, absolutamente realistas mas que, no entanto, uma vez que estão desprovidas de todo o supérfluo, são também estilizadas.
Há três factores que contribuem para que vejamos a cozinha como um manicómio: mas destes, o que se manifesta com maior clareza – o comportamento das personagens – não é mais do que uma consequência de um processo de condicionamento que os outros dois se combinaram para perpetuar. No entanto, o próprio comportamento-sob-pressão se torna um agente activo e alimenta o clima de frenesim de que começou por ser resposta: tanto assim é que, na acção tal como a vemos, causa e efeito são praticamente inseparáveis. Quase tão dominante em termos dramáticos, se bem que mais fáceis de ignorar quando se lê a peça em vez de a ver no palco, são, em primeiro lugar, o carácter opressivo da cozinha enquanto local com uma vida predatória própria, e em segundo, atravessando tudo, o permanente barulho dos fogões e fornos.
[…]
Há que realçar que só no gesto de frustração e desafio contra a sua amante, a sua condição e a própria cozinha este dia difere de um qualquer outro. Os pontos de ênfase dramática – a chegada, de manhã, de um novo cozinheiro, Kevin, um esporádico longo discurso de Paul perto do fim do interlúdio e, ao longo de toda a peça, a discussão entre Peter e Monique – nascem com naturalidade dos ritmos da rotina da cozinha, em que as personagens se integram instintivamente, como se de um velho hábito se tratasse. Também é de notar que o acesso de fúria de Peter não tenha sido desencadeado por uma qualquer situação traumática na sua relação com Monique. É verdade que a crescente preferência que a rapariga vai mostrando pela pouco exigente segurança que o marido lhe oferece, em oposição às dificuldades do seu tempestuoso amor por Peter são um importante factor. Mas é a aparentemente trivial questiúncula com uma empregada [Violet] – que retira dois pratos de rodovalho do bloco de Peter em vez de esperar pela sua vez de ser atendida – que precipita a sua reacção violenta. A cozinha provoca-a e a cozinha aguenta o seu impacto.

Glenda LEEMING, Simon TRUSSLER, The Plays of Arnold Wesker, Londres, Victor Gollancz, 1971
(Pp. 9 – 31)

Sem comentários: