sexta-feira, 11 de maio de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 4

Irene e Shakespeare

A Irene era uma coisinha baixinha, bonita, que caminhava dobrada como se fosse um S, com a barriga espetada, era acanhada e desastrada; tinha grandes olhos sonolentos; o cabelo mal preso pela manhã, mas muito bem arranjado durante a tarde. Pouco diplomática mas com um coração generoso – “Não acredito que alguém seja mesmo mau, há sempre uma razão qualquer…” – e um sentido de humor atrevido – “Oh, claro que tenho de ter um namorado! Não conseguia viver sem isso!” – Estava a perder a paciência com o que tinha na altura.

“O meu namorado diz que eu sou fácil! Não sou, pois não?” Respondi-lhe que ainda não sabia. Ela está sempre a falar do namorado, do que ele diz. Uma espécie de Tomlinson. [poema de Kipling]. “Ouvi isto e li aquilo…” e o namorado parece estar sempre a falar de outras mulheres. O que a aborrece.
“Oh, fico com tantos ciúmes! E não me importava, mas as raparigas de que ele está sempre a falar não são nada bonitas. Às vezes, fico mesmo zangada e pergunto-lho porque é que não vai com elas se gosta tanto delas. Ora, é assim, não é? Mas ele diz-me sempre que me ama, que estava só na brincadeira. É claro que não acredito nele. Todos os homens dizem o mesmo mas não sei…” Ela é a ingenuidade em pessoa mas é sincera e leal – pelo menos para mim… “Não gosto de mulheres maliciosas, dou-me bem com as outras mulheres, dou, sabes, mas há uma coisa de que não gosto nelas é que gostam de homens!”
Rimo-nos os dois, mas, para ela, isto não era só uma piada, era um facto! Era uma coisa de que ela não gostava em todas as mulheres.
“O Ray está sempre a perguntar-me se o amo e claro que lhe respondo que sim, que nunca gostaria de outro homem, só para o manter calado. Depois pergunta-me porque é que o amo. Costumava dizer-lhe que ele era diferente e assim... mas agora ele continua a perguntar e eu já não lhe consigo responder. Fartei-me de lhe responder. Não sei porque é que o amo. Pensando bem... ele obrigou-me!... hábito, calculo. Por isso, mudei e agora respondo-lhe que não sei. Ray, tu não és diferente dos outros. E ele continua a falar de querer casar com uma mulher virgem. Será que todos querem? Parece que se esquecem de que as mulheres também podiam querer casar com homens virgens."
"E querem? As mulheres não querem um homem com experiência?"
"Bom... não sei. Às vezes. Queres que a tua mulher seja virgem?"
Só quero que ela goste de mim. Tenho poucos preconceitos!”

Levei Irene a ver uma produção itinerante de O Mercador de Veneza no teatro Royal, encenado por um homem de que nunca tinha ouvido falar, um tal Peter Hall, com o papel de Shylock feito por um actor de que, mais tarde, ouvi falar e que, ainda mais tarde, vim a amaldiçoar diariamente – Tony Church, um dos signatários da carta a favor dos actores da Royal Shakespeare Company que se recusaram a fazer Os Jornalistas. Não tenho qualquer registo do que pensei sobre este espectáculo, só me lembro que Irene, que não sabia nada da peça, ficou agitada quando chegou à altura de Bassânio escolher o cofre. Excitadíssima, agarrou-se ao meu braço, sussurrando: “Achas que ele vai escolher o certo? Vai? Achas?” E ficou felicíssima quando ele o fez. Durante a cena no tribunal desviou os olhos no momento em que Shylock se preparava para cortar o seu penhor do peito de António. Nunca me tinha ocorrido que alguém pudesse não conhecer a história de Shylock, do mercador e da libra de carne. Depois de uma noite assim como poderíamos não ter feito amor? A minha primeira vez em muito tempo. Na manhã seguinte, andei aos saltos enquanto preparava os pequenos-almoços, animado por uma fome saciada. Muito obrigado, senhor Shakespeare, mas não a si, senhor Church, apesar de tudo!

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