terça-feira, 8 de maio de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 3

Os Outros – Nick

Havia mais gente a pairar naquela cozinha: um assistente de cozinheiro em part-time, Jimmy, um homem roliço, tímido e gorducho; o pequeno esgalgado e resmungão Jimmy Moore, que lavava a louça e vivia a queixar-se da forma como todos aqueles que têm trabalhos degradantes se queixam para tentar restabelecer a sua dignidade. Ele idolatrava Tom que tinha algum cuidado com ele.
- Moore! Anda cá, Moore, rai’s te partam!
- Sim. Bullock. Vou já, Bullock. - Isto já durava havia catorze anos. Tom gostava dos desgraçados.
Albert, outro lavador de louça, gay e também agarrado à mãe, ia aos chás da tarde e apaixonou-se perdidamente por mim. Quanto mais brincava e troçava dele, mais ele me perseguia. Edie, a cozinheira dos pequenos-almoços, uma mulher casada, com ar de cigana e gasta, com uma sensualidade latente e com quem penso que Tom tinha um caso. Com toda a certeza, ele desejava-a. Ela teve um fraquinho por mim e namoriscávamos… homem jovem, mulher mais velha. Tom ficou ciumento mas não podia revelar-se demasiado verde [ciumento vd. Othello de Shakespeare] com medo de revelar os seus verdadeiros sentimentos. Um dia, confiaram-lhe um aprendiz de cozinheiro, Nick. O rapaz tinha cadastro e esta aprendizagem fazia parte da sua liberdade condicional. Tom adorou esta nova imagem de protector, se bem que Nick fosse obtuso – doce mas lúgubre. Tornei-me uma espécie de irmão adoptivo mais velho. As empregadas de mesa – Irene, Rene, Dolly, Winnie; um empregado de mesa já antigo, Bob, e um chefe de mesa, o mais devasso dos homens, que quando as encontrava, fazia sexo com todas as mulheres da casa nos corredores, armazéns e em cima das mesas. Algures na costa de East Anglia, tem hoje uma casa de campo com uma decoração monstruosa.
Nick, de quem fiz de irmão há muito perdido, tinha uma mentalidade de um género sobre o qual me debrucei durante muito tempo. “Obtuso” é uma palavra demasiado fácil para o descrever. Pode ser aflitivo gozar de capacidades mentais limitadas mas não é crime ter-se nascido estúpido. Pondo a coisa de forma positiva, existem pessoas que têm recursos intelectuais escassos mas cuja companhia pode ser infinitamente mais agradável do que a de outros dotados mais generosamente. Nick era uma delas.
O conflito que atormenta muitos de nós que temos corações generosos desenrola-se entre a necessidade, o desejo de ver toda a Humanidade como toda igual e sensata e a experiência que nos mostra que grande parte dessa Humanidade é estúpida, irracional e muitas vezes cruel. O conflito entre querermos que toda a gente seja igual e a experiência do quotidiano que nos mostra claramente que as pessoas não são iguais. Isto custa e confunde e leva muitas pessoas a adoptar falsas atitudes e posições. Sabemos que todos nascemos com direitos iguais, mas isto não significa declarar que todos somos iguais. Toda a gente está consciente desta distinção, uma vez que vivemos as nossas vidas de manhã à noite, todos os dias, com base nesse facto: não pedimos a pessoas que sabemos serem incapazes de dar, não damos um emprego aos que sabemos não estarem habilitados para essa função, não nos tornamos amigos de gente que sabemos estar num plano intelectual mais elevado ou inferior ao nosso… a menos que estejamos preparados para ser forçados e desafiados por quem tenha um intelecto maior do que o nosso, ou preparados para sacrificar o estímulo intelectual em prol de um estímulo diferente.
As minhas notas registam as afirmações de Nick.

“Para além de não gostar de música clássica porque não tem melodia – mas faz-me pensar nas coisas, sabes, coisas que aconteceram ou podem vir a acontecer – às vezes dá-me cabo da cabeça… É um sentimento maravilhoso saber que podemos dar ordens a gente abaixo de nós. O sentimento do poder. Só o uso com brigões – odeio brigões…”

O que é que uma pessoa pode fazer perante afirmações destas? Por um lado, a afirmação absurda que a música clássica não tem melodia, por outro lado afirma que o faz vibrar. Por um lado afirma que não sente qualquer pejo em exercer o poder sobre outras pessoas, mas afirma que só gosta de o fazer com gente briguenta. Embrenhei-me em tortuosas conversas com ele. Era o final da noite. Eu estava de turno na lavagem da louça. Nick tinha acabado de chegar do cinema onde passava a maior parte do seu tempo livre e andava por ali, à espera da ceia. Tomei consciência de que estava a lavar pratos e cantarolei para o libertino residente que estava a passar naquele momento:

- “Quando penso como a minha luz se gastou…” - Parecia um pensamento adequado para quem tinha os braços enfiados em espuma de sabão. Virei-me para Nick. – Não sabias que o Milton disse isto, pois não?
- Não. Disse?
- Mas será que o disse enquanto estava a lavar a louça…?
- E se disse?
- Ah! Mas será que ele lavava louça para as Casas-Museu?
- Não sei. Lavava?
- Talvez sim.
- Não me interessa saber quem ele era.
- Não?
- Não! Porque é que há-de interessar? É um homem, só isso.
- Dizias o mesmo se fosse o Cromwell?
- Sim… um homem como os outros, como eu.
- As façanhas de uma pessoa não te importam?
- Não, nem uma.
- E os reformadores criminais?
- O quê?
- Não percebes que se não fossem eles tu tinhas sido enforcado por causa do teu crime?
- E depois?
- Isso não te importa?
- Porquê? Não me faz diferença, para a minha vida, não.
- Mas estarias morto. E não estavas aqui.
- E depois? Tinha sido enforcado.
Olhei para Nick com atenção. Era verdade, não se importava. Não estava nada impressionado.
- Diz-me, Nick, há alguma coisa que te interesse?
- Há. Montes de coisas.
- Como por exemplo?
- Oh, montes.
- Um exemplo.
- Música.
- Sabes alguma coisa de música?
- Não. Nada.
- Então, não te pode interessar. Interessaria se soubesses alguma coisa.
- O que é que eu posso fazer, na situação em que estou?
- Muito bem. Então que mais te interessa ou te impressiona?
- Oh, montes de coisas. Não me conheces. Não sabes nada de mim, só os meus pais sabem tudo acerca de mim, tudo, tudinho.
- Sabes Nick, se há que coisa que torne uma pessoa aborrecida é ela não se interessar por nada.
- Estou-me nas tintas se acham que sou um chato.
- Claro que não estás.
- Porquê? Que diferença faz?
- Felicidade.
- Felicidade?
- Sim, com as outras pessoas.
- Não quero saber como me dou com as outras pessoas.
- Ora, claro que queres. Queres e muito.
- Brr! Não me venhas com isso.

Era obviamente um jovem por quem eu tinha uma certa afeição e, ao mesmo tempo, não sabia lidar com ele. Os meus apontamentos continuam:

“… tenho a certeza de que não sabe ler mais do que é necessário para se manter vivo… mas é um rapaz estranho. Bem-intencionado mas com a inteligência mais tacanha que alguma vez conheci. Tem uma característica redentora: uma sensibilidade que o confunde e que não consegue transmitir a não ser por um comentário ou outro. Tem um cérebro de um miúdo que tivesse batido com a cabeça numa parede aos quatro anos e nunca mais tivesse recuperado. A sua sensibilidade manifestava-se na consciência das suas limitações. “Não sou tão espero como o teu sobrinho, Miles… aí tens!” [Na altura, Miles tinha cerca de seis anos]. Mal conseguia lidar com o facto da sua existência. “Não penso… não consigo pensar. A minha cabeça está vazia.” Odeia estar sozinho. Corre atrás da companhia mais breve, quanto mais não seja para passar uns minutinhos na sala do pessoal, onde as empregadas mudam de roupa, ou comigo na minha sala mesmo que eu esteja a trabalhar, só quer estar sentado perto de alguém…”

É interessante que tenha usado a palavra “trabalhar” em vez de “escrever”. Se bem que não fosse profissional, ainda continuava a considerar a escrita como sendo a minha ocupação.

“… fica ali sentado, sem fazer nada, a olhar ou a dizer uma coisa ou outra, sem qualquer relevância. Sinto que nunca está a pensar, apenas a absorver as imagens que estão ao alcance do seu olhar. Diz uma coisa qualquer sobre o que tem na mão, a sua situação financeira, a tentativa de deixar de fumar. A sua conversa consiste em comentários em lugar de pensamentos. Nunca chegou a uma conclusão só por si: apenas a viu escrita ou ouviu falar dela. Pouco faz que não esteja assente no pensamento de outra pessoa – o Harry disse isto, o Tom aquilo, ou o sr. Taylor comentou… Quanto mais penso nele, mais patético e incrível este rapaz se torna. Alto, desajeitado, sentindo o que é bom se bem que incapaz de apoiar os seus sentimentos numa qualquer ideia.”

Depois de ele ter saído do Bell eu nunca mais o vi.
(Pp. 326-329)

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