quinta-feira, 26 de abril de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 2

A personalidade dominante era Tom Bullock, o Chefe – exuberante, egocêntrico, convencido, intolerante, bem-disposto, pouco interessado nos outros. À primeira vista, a sua jovialidade encantava, até se tornar notório que o seu interesse pelo nosso bem-estar se devia mais ao seu desejo de impressionar do que à sua curiosidade por nós. Ele provocava admiração com a sua democracia ostensiva. Odiava a subserviência e estava ansioso por mostrar aos outros que não a pedia a ninguém. Esperava dos que conhecia uma relação amigável e informal, e fazia-o saber desde logo. Mas rapidamente se queixava da informalidade que pedia. A sua fome de afeição imediata deixava-o exposto àquela alegria espalhafatosa e insensível que rapidamente degenera em abuso. Nunca aprendeu a lição do desprezo que ensombra a familiaridade: e sofria com isso.
Mas ele saltava, como um rapazinho, cheio de partidas e brincadeiras, que adorava que nós apreciássemos. Fosse como fosse, ele era divertido. E agitado. Em permanente movimento, um pequeno sapateado aqui, outro ali, um rápido passar de um braço pela cintura de uma das empregadas para um abraço, um beliscão num rabo, o tipo de acções que provocam franzires de sobrancelhas nestes tempos confusos quanto a decidir o que é divertimento e alegria e o que é lascívia condenável. Na maior parte dos locais de trabalho as duas coisas andam juntas, mas naquele tempo, a maior parte de nós sabia a diferença. Os homens comunicavam e as mulheres sabiam quando o toque era inocente, se era seguro e o afecto – e até mesmo um curioso respeito – residia na forma. Tom era, com toda a certeza, delicado se bem que espalhafatoso – não tinha nada de grosseiro ou brutal. Excepto com a mulher.
Nunca ficava de fora de uma conversa, tinha um tom assertivo e doutoral e irritava toda a gente com factos incontroversos – que ninguém tivesse dúvidas! – conhecia sempre alguém que era alguém, os que estavam no topo da sua profissão, da sua esfera de actividade. Nunca conhecia segundos classificados, só os vencedores em cada área. Richard Trauber era o melhor tenor que alguma vez existiu ou existirá – Tom nunca tinha ouvido falar de Jussi Björling, mas não interessava: “Não quero saber do que dizes, é o melhor que já existiu ou existirá.” O seu anterior patrão foi, a certa altura, o ciclista mais rápido do mundo. Os filmes americanos eram os melhores alguma vez feitos e não dava um tostão por nenhum filme que os ingleses, franceses, ou alemães ou russos fizessem. “E eu sou representativo do homem da rua,” era o seu grande argumento à mesa, em volta da qual todos nos sentávamos na apinhada sala do pessoal, “ e é o homem da rua quem decide o que é bom e mau. É o dinheiro que ele paga que conta, não se pode discutir com o que entra na bilheteira”. A discussão era velha e interminável e irresolúvel. Vindos de Tom esses pontos de vista, como os de muita gente, eram proclamações insistentes de quem ele pensava que era, mais do que argumentos racionais e sólidos. Efémeros, também. Atirados ao ar e logo esquecidos.
Mas o homem não. O homem era cheio de cor e contradições, e era recordado, o que, penso, era o seu maior desejo. Por um lado, intolerante, por outro… justo. Uma criança foi assassinada na Escócia e o caso fez manchete dos jornais. Uma mulherzinha que fazia a entrega das mercearias entrou pela porta da cozinha, vinda da rua, carregada de queijos e de uma indignação virtuosa em relação ao trágico acontecimento. “Acho que,” começou, “ele devia ser pendurado numa árvore onde toda a gente pudesse chegar e fazê-lo em postas, pois acho! Não há nada que seja demais para gente assim!” Ao que Tom explodiu: “Você é tão má quanto o próprio assassino! É sádica, se diz isso.”
Equivalente ao absolutismo de Tom era o seu poder de exagero. Só conheci outra pessoa como ele, um piloto da Royal Air Force chamado Paddy que conhecia sempre alguém que tinha feito qualquer coisa mais do que nós, que conseguia comer, beber, fumar, fazer sexo o dobro de nós. Se não fosse ele, seria alguém que ele conhecia e tinha sempre uma testemunha para provar o facto. […] Assim era Tom. Mas por trás do tipo exuberante, estava o homem mal-casado e infeliz.
Mary – Bebedolas (porque é que ela permitiria que lhe chamassem isto?) - era uma mulher morena e engraçada com um ar de superioridade muito parecido com o das mulheres nas lojas de Paris cuja sobranceria tenta em vão transmitir a ideia de que foram feitas para algo melhor do que atender o cliente. A maior parte do pessoal não gostava dela e Jimmy – o lavador de pratos de quem Tom era amigo – contou-me que eles discutiam com ódio e crueldade, ao passo que Irene – uma empregada dos quartos – dizia que ela era uma cabra e que dava uma vida de cão ao Tom. O próprio Tom confessou que vivia a maior parte do tempo em casa da mãe, que vivia sozinha […] Mary vivia a maior parte do tempo sozinha. “É melhor assim,” dizia, ”evita os inevitáveis confrontos. Uma separação destas é o mesmo que uma feliz vida de casado!” Noutra ocasião afirmou: “As pessoas pensam que nós brigamos, a minha mulher e eu. Não brigamos. Não é que me importe com o que as pessoas dizem… nada me preocupa menos…” Claro que nada o preocupava mais. Era assim, o Tom. Cheio de pequenos dogmas, interesses pessoais a defender, contradições, inconsistências, um saco cheio de pequenas fraquezas humanas. No entanto era afável, o que nos fazia ignorar as suas estúpidas hipocrisias. Excepto uma.
Com frequência gritava “Justiça!” mas não defendia os nossos direitos. Porque ele tinha o hábito de fazer muitas horas extraordinárias e raramente pedia o dinheiro por isso, esperava, irrazoavelmente, que nós fizéssemos o mesmo. A cozinha era toda a vida de Tom. Nada mais prendia a sua atenção excepto, talvez, a mãe; para todos os outros, a cozinha não era toda a nossa vida. Ele podia ter feito qualquer coisa em relação ao pagamento das horas extraordinárias, mas não fez nada. Se bem que houvesse um lado positivo – ele não chateava. Nem perseguia. Só esperava dos empregados da sua cozinha o que eles conseguiam fazer ou o que era preciso fazer-se. Não havia o medo de ser repreendido por se deixar queimar os bolos, ou descascar nabos amarelos em vez de nabos roxos, ou usar as últimas peras numa salada de frutas quando elas faziam falta para a Belle-Hélène. Como resultado disto, não existindo qualquer atmosfera de medo, pouco corria mal. E quando corria, Tom mantinha-se calmo e eficiente. A cozinha funcionava sem problemas porque ele sabia o quer tinha de ser feito, por que ordem, e quanto tempo demorava cada acção. Era temperamental mas nunca entrava em pânico e só duas vezes o vi perder a cabeça, de fúria. A primeira foi quando um cliente pediu uma dose maior (ou terá sido um pedido para repetir?) e ele enfureceu-se. Tom era muito rigoroso com a ganância. A segunda vez foi quando um aprendiz fritou o peixe errado. Tom atirou com tudo para um canto da cozinha e irrompeu em palavrões. Mas não era um tirano e nunca puxava dos galões. […]
No centro deste espírito irrequieto e descontrolado estava o velho cancro: um complexo de inferioridade. Ele tinha consciência de que a inteligência podia medir-se e que o nível de inteligência por que ele tinha respeito estava fora do seu alcance. Com frequência, se debatia para tentar libertar-se e entrava em competição, odiando alguém que dissesse o que ele achava dever ter sido ele a dizer. Troçava: “Sim, sim, é isso, está certo, claro.” Na tranquilidade da reflexão penso nele com mais simpatia do que as minhas notas sugerem que eu sentia na altura. As suas explosões barulhentas e insistentes devem ter-me dado cabo dos nervos.
No entanto, apesar da galhofa, gostávamos um do outro, se bem que a violência nunca estivesse longe.
[…]
A última nota sobre Tom, envolve a sua personalidade num padrão familiar. Em simultâneo com a sua violência para com a esposa, tinha um quase patético amor pelos animais. Os Taylor tinham um pequeno terrier chamado Phoebus que passava a maior parte do tempo na nossa cozinha, juntamente com um gato preto, e Tom preocupava-se com eles da mesma maneira que as pessoas que não têm mais nada sobre que derramar a sua afeição. Interrompia a conversa mais importante para saudar o cão, sempre que ele entrava na cozinha, com o nariz no chão, a cauda a abanar num prazer Pavloviano, expectante e ansioso, indo direitinho a ele.
“Oh, cãozinho! Aqui está um bom cãozinho! Pois és! Um bom cãozinho! Que acham, ein? Oh, cãozinho, cãozinho.” A vaidade mais ardentemente sentida de Tom era que o cão vinha ter com ela antes de toda a gente. “Aquele cão gosta de mim, pois gosta.” E mergulhava nos rituais do cuidado excessivo com o animal enquanto a sua bonita e impassível mulher ficava ali de pé, com um sorriso distante, habituada a tudo aquilo e sabendo, sem dúvida, muito que nós não sabíamos.

Pp. 322-326

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