quarta-feira, 25 de abril de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 1


Hotel Bell
Norwich
Norfolk
Sábado, 12 de Dez. 1953

Olá Pai Joe,
Sei que não escrevo especialmente para ti muitas vezes, mas como a mamã me disse que não estás tão bem quanto seria desejável, pensei que umas poucas linhas te iriam animar.
Não sei como, penso que gostarias do meu quarto. É uma mansarda que dá para o que deve ser a zona mais animada de Norwich, e hoje, sábado, olho para fora da minha janela e vejo multidões de pessoas e carros nas ruas. As compras de Natal! Milhares de pessoas a gastarem o que devem ser milhões de libras.
[…]
Ias gostar dele. O quarto é pequeno mas tem um formato estranho e deve ter umas centenas de anos. O próprio Bell deve ser um dos mais antigos hotéis da cidade. Norwich, como te recordarás por causa daquele passeio que fizeste há algum tempo, tem certamente uns bons mil anos. O castelo é normando. Existe, é claro, o inevitável hotel onde a Raínha Bess [Isabel I] pernoitou. Julgo que todas as cidades antigas de Inglaterra afirmam que a boa Rainha lá passou algum tempo, numa altura ou noutra.
[…]
Talvez o mau maior prazer aqui, e seria também o teu, seja andar pelas livrarias. Há muitas e consegue comprar-se os clássicos por muito pouco dinheiro.
[…] Aqui tenho muito tempo para ler. Posso ir para cama por volta das 10 da noite e ler até à meia-noite.
[…] Hoje, por exemplo, vou ver os Norwich Players […] e a sua versão dos Espectros, de Ibsen. E, para a semana, é o jantar anual do grupo de cinema que custa dez xelins. Estou prestes a considerar se vou ou não. É muito caro e com as dívidas que tenho de pagar, o meu dinheiro não dá para muito. Verei…

O gerente chamava-se Sr. Taylor, um homem paternal e distraído. Quando me entrevistou para a posição de ajudante de cozinha, a mais humilde das humildes ocupações da cozinha, a minha atitude baralhou-o. Quem seria este jovem que estava à sua frente a falar com uma voz “educada”, firme e confiante e que desejava um trabalho tão modesto?
[…]
A sra. Taylor referia-se ao marido como “Papá”, presumo que mantendo a forma como falava com as suas duas filhas. O sr. e a sra. Taylor eram conhecidos pelo pessoal do hotel como “Mamã e Papá”. Por regra, o sr. Taylor usava calças de flanela cinzentas com um blazer azul e botões dourados – um fato que, em palco, teria leitura imediata – e, de vez em quando, usava um fato de golfe castanho. O seu fato “melhor” era cinzento. De altura mediana, cabelo cinzento, nunca parecia ter a certeza do que se estava a passar, esperando que toda a gente soubesse e ele pudesse confiar em todos.
[…] Naquele ano, os Taylor terminavam o contrato e deram-nos a escolher entre 3,6 dinheiros por uma caixa de Natal, ou podíamos dar-lhes 1 penny para pagar a diferença de um maço de cigarros que custava 3,7 dinheiros! Nem houve qualquer gesto de reconhecimento por todo o tempo a mais que todos tínhamos trabalhado. As minhas notas dizem-me:

"A noite passada deram uma festa para a R [Rosemary, uma das filhas]. O chefe passou a noite toda a fazer empadas, doces e outras coisas. Calculo que as coisas tenham vindo dos abastecimentos normais, e não dos bolsos deles. Nada de gratificação para o chefe, como se o trabalho dele fosse um dado adquirido… pouca classe, gente pequena. Chamavam-nos pelo primeiro nome, até eram amigáveis no trato. Mas é o tom condescendente… não tenho a mínima dúvida de que, mais tarde ou mais cedo. Acabarei por discutir com a madame."

No entanto, a mesquinhez não era opressiva. O meu quarto na mansarda era o meu castelo, inviolado. Respeitavam a nossa privacidade.

Tom, o Chefe

A grande cozinha estava situada dois metros abaixo do chão. Os fornecedores vinham da rua e desciam as escadas para fazer as suas entregas. O Chefe era Tom Bullock, e a mulher dele, Mary, de alcunha “Bebedolas”, tratava das contas. Brigavam um com o outro e ele passava a maior parte do tempo em casa da mãe – da casa dele, pouco tempo depois.
Tom rapidamente percebeu que eu tinha potencial para mais do que apenas ser ajudante de cozinha e ensinou-me os rudimentos da culinária – manteiga clarificada para molhos, massa para empadas e tartes doces e salgadas, tarefas fáceis. As suas capacidades não atingiam a haute cuisine se bem que, de vez em quando, em casos especiais, ele alcançasse alturas acima do normal, segundo a bitola do caixeiro-viajante: poulet au riz [arroz de frango], por exemplo, ou um trifle [1] mais do que básico. As ementas normas incluíam rosbife e Yorkshire pudding [2], costeletas grelhadas, perna de borrego assada, lombo de porco assado, tartes de maçã, pudins de pão, ameixas e custarda. E assim, os meus dias na cozinha eram variados – não só lavava as bancadas e limpava o chão de ladrilho, não só descascava ervilhas e batatas, como também batia as claras para fazer merengue, amassava a massa para as empadas de vaca e rins, fazia molhos com caldo, mexia e passava a custarda até ficar macia. Mais tarde, quando Edie, a cozinheira dos pequenos-almoços foi de férias, confiaram-me a tarefa de os fazer, na copa do andar superior, que estava de frente para as portas da sala de jantar.
E tinha ajuda. Durante os cerca de catorze meses que trabalhei no Bell, trabalharam ao meu lado, por várias vezes, duas personalidades cheias de vida: Gordon e Harry. Já não me lembro qual deles foi o primeiro, o Gordon, acho; eram segundos-ajudantes, sendo eu primeiro, se bem que nunca essa divisão fosse invocada; a longevidade ditava a hierarquia. Harry era um malandro encantador em quem não se podia confiar para nada. Os seus salários desapareciam em vinte e quatro horas. Durante o resto da semana andava no cravanço. Gordon, de cabelo escuro, baixinho, cheio de vivacidade, em algumas manhãs muito trémulo, dobrado sobre o lava-louças enquanto descascava as batatas, muitas vezes ainda com maquilhagem esborratada na cara, era gay, e ganhava um dinheiro extra como travesti, cantando libidinosamente num bar perto da estação de Norwich chamado Blue Room. Tinha um talento modesto mas a sua tendência para “trabalho duro” mantinha-lhe os pés na terra, numa vida confusa; e se bem que a sua dureza fosse do tipo de esquina, era apenas mais uma vítima da vida, ansiando por amor e derramando gentileza indiscriminada sobre todos aqueles que, depois, abusavam dele. De Gordon e Harry falarei mais tarde.

[1] Tipo de sobremesa, muito popular em Inglaterra, à base de palitos la Reine ou bolo seco, compotas várias, licor e molho de custarda.
[2] Uma espécie de morcela salgada.
Pp. 319 - 322

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