terça-feira, 10 de abril de 2007

O Teatro Político - 1

Introdução

Este livro estuda um fenómeno curioso. Analisa o trabalho de nove talentosos e inovadores dramaturgos britânicos que partilhavam uma convicção louvável mas estranha: que escrevendo peças e conseguindo que fossem representadas, podiam ajudar a mudar a forma como a sociedade está estruturada.
A convicção não é nova. Há mais de dois mil anos atrás, a teoria da catarse de Aristóteles, que afirmava que assistir a uma tragédia poderia expurgar-nos das nossas emoções malsãs, atribuía um benefício social directo ao drama. A Igreja Católica, se bem que tivesse profundas desconfianças em relação ao teatro, esteve disposta a utilizá-lo como forma de propagar a fé, legando-nos o termo “propaganda”. O utilitarismo do séc. XVIII justificou frequentemente o drama em função da sua utilidade social e o dramaturgo alemão Friedrich Schiller deu ao seu ensaio seminal o elucidativo título “O Teatro considerado como instituição moral”.
No século XX, o teatro, com a intenção de se virar para uma nova forma de pensar, ou, pelo menos, desafiar as velhas formas de pensamento, tornou-se mais abertamente político, questionando não tanto a moralidade social enquanto organização fundamental da sociedade, mas colocando a ênfase na economia em vez de na ética. Por regra, moldada pela análise do capitalismo de Marx, uma série de dramaturgos e encenadores, com relevo para Edwin Piscator e Bertolt Brecht, tentou usar o palco para propor alternativas socialistas às injustiças do mundo que os rodeava. Ao fazê-lo ajudaram a definir o que agora designamos por “teatro político”, o título do livro de 1929, de Piscator, sobre o teatro.
Todo o teatro é político. Na realidade é a mais política de todas as formas de arte. Obviamente, é apresentado num fórum muito mais público do que qualquer outra arte. Um romance pode ser lida por muito mais pessoas do que as que assistem a uma determinada peça; os edifícios e as estátuas no espaço público podem ser vistas por muita gente a quem nunca passaria pela cabeça pôr um pé dentro de um teatro, todos os dias, a televisão chega a muitas vezes mais espectadores do que o maior teatro do mundo poderia receber ao longo de uma década. Mas o romance é lido em privado; os passantes, se reparam numa estátua, reagem individualmente; a televisão, mesmo se vista em conjunto por um grupo de pessoas, continua a ser parte de um ambiente doméstico. Como afirma David Edgar: “O problema inerente à televisão enquanto agente de ideias radicais é que a sua audiência de massas não é confrontada em massa. É confrontada na arena atomizada da sala de estar da família, o local onde a maior parte das pessoas é o menos crítica que é possível.”
As artes performativas gozam da característica única de fazer reunir gente num lugar público para responder em conjunto a uma experiência artística, quer seja ver dançar, ouvir uma sinfonia ou assistir a uma peça. E porque o teatro usa palavras, a sua comunicação pode ser bastante específica e desafiadora. No teatro, actores em carne e osso falam em voz alta à frente de, e às vezes directamente com um público. Assim, as ideias e os sentimentos são expressos ao mesmo tempo a uma comunidade de espectadores. Até mesmo o cinema, que talvez seja o que mais se aproxima do teatro ao vivo em termos de recepção, oferece uma experiência muito mais privada e interior (pensemos em quão disparatado seria fazer comentários para o écran, ou na diferença entre a troca de comentários animados no intervalo de uma peça, por medíocre que seja, e a atmosfera de morna indiferença durante a interrupção de um filme).
Tal como o público que está no teatro não consegue evitar assumir um certo papel comum, também o processo de criação artística no teatro é um processo de partilha. Um romance, um poema ou quadro estão completos no momento em que saem da mão do criador e os acidentes de publicação ou exibição têm um efeito mínimo na sua qualidade. Mas o texto do dramaturgo é apenas o primeiro passo num complexo processo que incluirá criativos, encenadores, actores, mestras de guarda-roupa e por aí fora, contribuindo todos com a sua criatividade (ou técnica) para o resultado final, muito adequadamente designada por “produção”.
Ainda mais, o teatro depende da transcendência. Por um lado, os actores têm de transcender a sua própria individualidade para poderem assumir o papel de um estranho. Por outro lado, o público tem de se libertar das suas preocupações individuais para se poder envolver com o que acontece no palco. E este processo, que ocorre tanto no representar empático do realismo como nos sublinhados sociais do teatro Brechtiano, é um acto inerentemente político, uma vez que a origem do pensamento político está na vontade de nos identificarmos com outros, partilhar os seus problemas, experimentar a transcendência.
[…]
Em termos de conteúdo, algumas peças são claramente mais políticas do que outras, mas deveria ser igualmente óbvio que é impossível fazer desfilar em cima de um palco personagens que interagem socialmente perante um público reunido para assistir a essas relações, sem que exista algum conteúdo político. Até mesmo a mais palerma das farsas ou o mais inócuo dos musicais reflectirá uma qualquer forma de ideologia, normalmente, a da sociedade. Neste sentido. Todo o teatro é verdadeiramente político.
[…]
Podemos discernir vários elementos no processo de escrita para o teatro político. Para começar, existe a crença política de cada dramaturgo. […] Também o meio de onde provêm é importante. […] Wesker desconfia profundamente do mundo académico. […] Aquilo que pensam que a sua escrita para teatro pode conseguir. Nenhum é tão ingénuo a ponto de pensar que ver uma peça levaria os elementos do público a correr para as barricadas. […] Talvez nem sequer afecte o seu voto nas próximas eleições. Como escreveu David Hare, em 1991: “O primeiro erro é pensar que os escritores ingleses… querem ter mais influência nos assuntos da nação do que já têm. Na minha opinião, não querem mais do que qualquer outro cidadão provocar a queda do governo ou forçar a aprovação de leis.” […]
John Arden, em 1966, foi igualmente modesto nas suas afirmações quanto à eficácia do seu teatro:
“O protesto é um tipo fútil de actividade no teatro. É altamente improvável que se o presidente Johnson e o senhor McNamara viessem ver esta peça [Sargeant Musgrave’s Dance] dissessem: “Oh, valha-me Deus, temos de sair do Vietname”. … a única coisa que podemos fazer é continuar a dizer o que não gostamos na sociedade em que vivemos.”
Dito isto, fica claro que até mesmo o menos radical deste grupo de escritores tem esperança que um público, após ter visto uma das suas peças, sairá do teatro de alguma forma mudado, com a sua consciência política mais desperta. Como escreveu Simon Tussler, em 1975: “A maior parte das pessoas envolvidas no teatro alternativo espera provavelmente que o seu trabalho, por pouco ou indirectamente que o faça, contribua para uma consciência da necessidade de mudanças sociais, sejam elas graduais e parcelares ou radicais e profundas.” Dois séculos antes, Lessing tinha defendido, na sua Dramaturgia de Hamburgo, referindo-se às comédias de Molière, que estas peças podiam não curar os doentes mas, pelo menos, tornariam os sãos mais saudáveis.

(Pp. 1-8)
Michael Patterson, Strategies of Political Theatre. Post-War British Playwrights, Cambridge, CUP, 2003.

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