sábado, 26 de maio de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Vinte e Seis

A Cozinha

John [Dexter] e eu éramos agora de confiança. Ainda não com direito a uma montagem completa, mas o suficiente. John recebeu luz verde para encenar A Cozinha, num dos espcetáculos sem cenário a ser apresentado aos domingos à noite – 6 e 13 de Setembro.
Até esse momento, os espectáculos sem cenário eram experiências que utilizavam tantos actores famosos quantos fosse possível. Recebiam £2 por dia para despesas e o orçamento final não podia ultrapassar as £50 por duas semanas de ensaios. A peça tinha de se afogar ou vogar com base num espectáculo de domingo à noite. Foi aberta uma excepção para A Cozinha, em parte porque era uma peça difícil que exigia um elenco absurdo de trinta actores, em parte porque o sucesso de Raízes nos tinha dado alguns "privilégios": o orçamento foi duplicado - £100 – ainda que com apenas catorze dias de ensaios mas, pelo menos, deram-nos dois espectáculos. É fácil descrever a estrutura d’A Cozinha. A grande cozinha de um restaurante que serve duas mil refeições por dia esteve silenciosa durante a noite, qual monstro adormecido. De manhã, muito cedo, o ajudante do turno da noite acorda-a, acendendo os fornos um a um. Um a um, os cozinheiros e as empregadas entram para virem preparar as refeições do dia. O primeiro acto termina com um frenético serviço de almoço. Segue-se um interlúdio. Alguns cozinheiros e ajudantes deixaram-se ficar antes de saírem para gozar o intervalo da tarde. Falam dos sonhos que têm de uma vida melhor. A refeição da noite nunca chega a ser servida porque a personagem central, que tem uma relação sem esperança com uma empregada casada, é finalmente rejeitada por ela e perde a cabeça, destruindo a cozinha. Os sonhos morrem debaixo da pressão de ambientes infernais.
A versão original não tinha o interlúdio e a peça foi pensada para ser feita do início ao fim, sem intervalo. A minha intenção era recriar a experiência do trabalho sob pressão, como me tinha acontecido na cozinha do Le Rallye, em Paris, ilustrando os efeitos desumanizadores do processo de trabalho. John percebeu de imediato que dois actos destinados a mostrar trabalho seriam uma coisa esmagadora. Era necessário um momento contrastante. Deu-me instruções para me atirar a escrever uma cena calma, não queria saber sobre o quê, desde que quebrasse a intensidade dos dois actos de “trabalho”. Tinha razão. Escrevi a sequência dos sonhos.
[...]
John, que era um técnico sobrebo [...] reconheceu também que o “serviço” tinha de ser descrito com mais exactidão do que eu tinha esboçado no texto. O “serviço” completo foi penosamente construído durante os ensaios, que foram de loucos mas excitantes. Incentivado pelo sucesso de Raízes, John estava entusiasmado com o material difícil com que tinha de trabalhar, enfrentando o desafio de coreografar trinta actores em cima de um palco e levando todos a mimar determinadas acções de cozinha, a concentrar-se, a ser uma presença credível permanente mesmo que tivessem muito pouco a dizer. Usava um apito de árbitro à volta do pescoço, que soprava com grande prazer sempre que as hordas se descontrolavam e ele precisava de as interromper para as pôr a funcionar outra vez.
Fundamental para o sucesso da peça foi a cenografia de Jocelyn[1]. Acabaram de publicar um magnífico livro sobre o trabalho dela. Nele, fala de John.

"Quando se faziam montagens para o domingo à noite no Court, alguma da responsabilidade estava aliviada. Toda a gente sabia que não iria haver cenário, pelo que era possível arriscar um trabalho como A Cozinha. Podíamos arriscar fazer sem nada. A Cozinha orientou-me nessa direcção – não a do minimalismo, a palavra está errada – mas a de incitar o público a pensar por si e a usar a sua imaginação."

[...]
A justificação da cenografia de Jocelyn era enganadora. A sua estrutura maravilhosamente vazia e abstracta não só permitia que o público imaginasse uma cozinha a sério, como o deixava livre para se concentrar no texto e apreciar a coreografia de John e o trabalho dos actores.
Enquanto os actores giravam e giravam, o meu pai estava a morrer.


(pp. 561-3)

Cortina


Não pude estar presente no primeiro espectáculo de domingo d’A Cozinha, mas informaram-me que tinha sido um sucesso. O segundo espectáculo de domingo foi memorável. Sentámo-nos, como sempre fazíamos, na primeira fila da plateia. Eu sentia a curiosidade excitada que ia tomando conta do público. Era um público que [...] tinha ouvido dizer que com A Cozinha, uma peça para trinta personagens, qualquer coisa de fora do normal ia acontecer. A atmosfera era palpável. Ali, à nossa frente, estava um palco quase vazio, apenas com as caixas de laranjas de Jocelyn, umas cortinas brancas e as paredes nuas do teatro expostas como nunca tinham estado. Num espaço assim, com toda a certeza que estava prestes a passar-se qualquer coisa de extraordinário.
A luz desceu. O público calou-se. O ajudante do turno da noite entrou, acendeu um forno, o zumbido surdo do forno começou. A cada forno que acendia, a intensidade da luz e do som aumentava. Um por um, os cozinheiros foram entrando e dirigindo-se para os seus blocos, as empregadas atravessavam o palco para irem vestir as fardas pretas e brancas. O trabalho do dia tinha começado.
O meu pai tinha morrido e a primeira peça que escrevi... tinha estreado.

(P. 565)

[1] Jocelyn Herbert, a cenógrafa, utilizou um palco vazio, com a parede do fundo e as varas de luzes à vista.

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