sábado, 26 de maio de 2007

E pronto!



... a Bruxa dá por acabada a publicação de excertos da vida do Empregado do Mês, encerrando também a Despensa, que, em princípio, não receberá mais fornecimentos.


Por aqui, o trabalho da Bruxa está feito. Resta-vos agora a vocês, aprendizes, fazerem o vosso e fazerem-no chegar às mãos da supra-citada Bruxa.


Foi um prazer...

Quanto Ouso - Capítulo Vinte e Seis

A Cozinha

John [Dexter] e eu éramos agora de confiança. Ainda não com direito a uma montagem completa, mas o suficiente. John recebeu luz verde para encenar A Cozinha, num dos espcetáculos sem cenário a ser apresentado aos domingos à noite – 6 e 13 de Setembro.
Até esse momento, os espectáculos sem cenário eram experiências que utilizavam tantos actores famosos quantos fosse possível. Recebiam £2 por dia para despesas e o orçamento final não podia ultrapassar as £50 por duas semanas de ensaios. A peça tinha de se afogar ou vogar com base num espectáculo de domingo à noite. Foi aberta uma excepção para A Cozinha, em parte porque era uma peça difícil que exigia um elenco absurdo de trinta actores, em parte porque o sucesso de Raízes nos tinha dado alguns "privilégios": o orçamento foi duplicado - £100 – ainda que com apenas catorze dias de ensaios mas, pelo menos, deram-nos dois espectáculos. É fácil descrever a estrutura d’A Cozinha. A grande cozinha de um restaurante que serve duas mil refeições por dia esteve silenciosa durante a noite, qual monstro adormecido. De manhã, muito cedo, o ajudante do turno da noite acorda-a, acendendo os fornos um a um. Um a um, os cozinheiros e as empregadas entram para virem preparar as refeições do dia. O primeiro acto termina com um frenético serviço de almoço. Segue-se um interlúdio. Alguns cozinheiros e ajudantes deixaram-se ficar antes de saírem para gozar o intervalo da tarde. Falam dos sonhos que têm de uma vida melhor. A refeição da noite nunca chega a ser servida porque a personagem central, que tem uma relação sem esperança com uma empregada casada, é finalmente rejeitada por ela e perde a cabeça, destruindo a cozinha. Os sonhos morrem debaixo da pressão de ambientes infernais.
A versão original não tinha o interlúdio e a peça foi pensada para ser feita do início ao fim, sem intervalo. A minha intenção era recriar a experiência do trabalho sob pressão, como me tinha acontecido na cozinha do Le Rallye, em Paris, ilustrando os efeitos desumanizadores do processo de trabalho. John percebeu de imediato que dois actos destinados a mostrar trabalho seriam uma coisa esmagadora. Era necessário um momento contrastante. Deu-me instruções para me atirar a escrever uma cena calma, não queria saber sobre o quê, desde que quebrasse a intensidade dos dois actos de “trabalho”. Tinha razão. Escrevi a sequência dos sonhos.
[...]
John, que era um técnico sobrebo [...] reconheceu também que o “serviço” tinha de ser descrito com mais exactidão do que eu tinha esboçado no texto. O “serviço” completo foi penosamente construído durante os ensaios, que foram de loucos mas excitantes. Incentivado pelo sucesso de Raízes, John estava entusiasmado com o material difícil com que tinha de trabalhar, enfrentando o desafio de coreografar trinta actores em cima de um palco e levando todos a mimar determinadas acções de cozinha, a concentrar-se, a ser uma presença credível permanente mesmo que tivessem muito pouco a dizer. Usava um apito de árbitro à volta do pescoço, que soprava com grande prazer sempre que as hordas se descontrolavam e ele precisava de as interromper para as pôr a funcionar outra vez.
Fundamental para o sucesso da peça foi a cenografia de Jocelyn[1]. Acabaram de publicar um magnífico livro sobre o trabalho dela. Nele, fala de John.

"Quando se faziam montagens para o domingo à noite no Court, alguma da responsabilidade estava aliviada. Toda a gente sabia que não iria haver cenário, pelo que era possível arriscar um trabalho como A Cozinha. Podíamos arriscar fazer sem nada. A Cozinha orientou-me nessa direcção – não a do minimalismo, a palavra está errada – mas a de incitar o público a pensar por si e a usar a sua imaginação."

[...]
A justificação da cenografia de Jocelyn era enganadora. A sua estrutura maravilhosamente vazia e abstracta não só permitia que o público imaginasse uma cozinha a sério, como o deixava livre para se concentrar no texto e apreciar a coreografia de John e o trabalho dos actores.
Enquanto os actores giravam e giravam, o meu pai estava a morrer.


(pp. 561-3)

Cortina


Não pude estar presente no primeiro espectáculo de domingo d’A Cozinha, mas informaram-me que tinha sido um sucesso. O segundo espectáculo de domingo foi memorável. Sentámo-nos, como sempre fazíamos, na primeira fila da plateia. Eu sentia a curiosidade excitada que ia tomando conta do público. Era um público que [...] tinha ouvido dizer que com A Cozinha, uma peça para trinta personagens, qualquer coisa de fora do normal ia acontecer. A atmosfera era palpável. Ali, à nossa frente, estava um palco quase vazio, apenas com as caixas de laranjas de Jocelyn, umas cortinas brancas e as paredes nuas do teatro expostas como nunca tinham estado. Num espaço assim, com toda a certeza que estava prestes a passar-se qualquer coisa de extraordinário.
A luz desceu. O público calou-se. O ajudante do turno da noite entrou, acendeu um forno, o zumbido surdo do forno começou. A cada forno que acendia, a intensidade da luz e do som aumentava. Um por um, os cozinheiros foram entrando e dirigindo-se para os seus blocos, as empregadas atravessavam o palco para irem vestir as fardas pretas e brancas. O trabalho do dia tinha começado.
O meu pai tinha morrido e a primeira peça que escrevi... tinha estreado.

(P. 565)

[1] Jocelyn Herbert, a cenógrafa, utilizou um palco vazio, com a parede do fundo e as varas de luzes à vista.

Quanto Ouso - Capítulo Vinte e Três

E depois Robert

Escrever é uma coisa; no momento em que se coloca o manuscrito dentro de um envelope para o ir pôr ao correio, o trabalho desliza para fora do nosso olhar para dentro do olhar de outra pessoa. Os nossos olhos transformam-se nos olhos da pessoa a quem o estamos a mandar. De repente, as suas imperfeições saltam à vista. A confiança esboroa-se. Lembro-me de que nos primeiros anos em que ensaiei peças me sentia bem até ao momento em que me sentava no meio do público, na noite da estreia. Mesmo então me mantinha calmo até ao momento em que as luzes deseciam e eu passava ser parte integrante da massa anónima que tinha vindo ver o que eu agora sentia como tendo sido escrito por outra pessoa.
[...]

22.5.55

Li o seu conto “O Banho” com grande interesse. Penso que tem algumas coisas muito boas; mas, mesmo assim, parece-me que falha o objectivo...

12.1.56

Gostei muito do sentimento expresso no seu poema, mas penso que ainda não conseguiu dar-lhe uma forma inequivocamente sua.
Após ter pensado bem, temo ter chegado à conclusão de que não conseguirei encontrar lugar para ele. Lamento muito. Devolvo-lho mas com pena.

14.12.56

Lemos o seu novo manuscrito com interesse considerável, em especial a prosa, e gostámos de muitos dos seus aspectos. No tentanto, temo que... Lamento muito... Agradeço o prazer que me deu ao lê-lo.

Três meses mais tarde, escrevi A Cozinha.

Quanto Ouso - Capítulo Vinte e Um

Paris – Uma Introdução

Partimos para Paris de comboio e barco no dia 27 de Maio de 1956, três dias depois do meu vigésimo quarto aniversário, três dias antes do vigésimo aniversário do Dusty (dezanove dias depois da estreia de O Tempo e a Ira de que não tínhamos consciência) e com apenas cerca de £100 entre os dois. Prometi-lhe aventura. Ela nunca tinha saído de Inglaterra. Estava nervosa, até mesmo um pouco receosa. Não tínhamos tratado de nada quanto a um sítio para viver ou onde trabalhar.
Havia um sistema de intercâmbio dentro do negócio da restauração e hotelaria mantido pelo Instituto de Hotelaria e Restauração – cozinheiros que queriam ir trabalhar para Londres eram trocados por cozinheiros ingleses que quisessem ir trabalhar para o continente. O meu plano consistia em candidatar-me a um lugar e depois pedir uma autorização de trabalho. Desde muito cedo na minha vida que tive uma determinação instintiva em deter o controlo da minha vida. Por vezes resulta, outras não. Os nossos contactos eram o Barney que tinha casado com a Monique e vivia nos arredores de Paris, em Mantes-la-Jolie e um empregado de mesa do Hungaria de quem eu e o Dusty nos tínhamos tornado amigos. Era um homem jovem, alto, bem-parecido e tímido, Gerry Simpson, que trabalhava no que me tinham dito ser o restaurante mais caro de Paris – o Tour d’Argent. Não tinha dúvidas de que seria fácil arranjarmos um sítio para ficar durante umas noites enquanto procurávamos por um apartamento. Tudo iria correr bem. Não havia problemas inultrapassáveis. Éramos novos.

(P. 399)

Cartas diárias palavras diárias

O meu diário de Paris – de 21 de Junho de 1956 a 17 de Janeiro de 1957 – tem mais de 30.000 palavras; e as inesquecíveis cartas da minha mãe contam mais de 29.000. Ficámos gratos por as termos. Uma linha de vida. Uma fonte de encorajamento que reflecte o tempo que passámos em Paris, a vida de casa, o humor dela e o seu espírito indomável.
[...]
Paris deu-me amigos para toda a vida: o Sami e a Lisa Dora e o filho, o Francis, de quem a Dusty tomava conta. E seis meses de trabalho no restaurante Le Rallye deu-me a minha primeira peça que, apesar do seu longo elenco de trinta personagens, é a mais representada de todas as que escrevi - sessenta cidades, vinte e cinco países, dezoito línguas - e que, sem supresa, se intitula The Kitchen, La Cuisine, La Cocina, Die Küche, De Keuken, Köket, Kuchnia, A Cozinha, A Kohnyha, Kjøkkenet, [...]... Pode dizer-se que o trabalho no Le Rallye compensou!

(Pp. 402-3)

segunda-feira, 21 de maio de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 5

Da cozinha para A Cozinha

Nesta parte não há cortina. A cozinha está sempre presente. Semi-obscuridade. […] O ajudante do turno da noite, MAGI, entra. Espreguiça-se, olha para o relógio e deixa-se ficar de pé, imóvel, tomando consciência do sítio onde está. São sete da manhã. Depois, com uma mecha, acende os fornos. Salta uma chama para o primeiro. Há fumo, chamas e depressa o forno adquire uma chama firme […], MAX entra […] BERTHA entra […] entram BETTY e WINNIE, empregadas de mesa, a falar entre dentes, que saem para a sala de jantar. Entram PAUL e RAYMOND.

Nenhuma destas recordações veio a fazer parte das peças ou contos publicados, mas sim daquela trilogia de contos O Vale Terrível que, se bem que nunca publicados, foram importantes para mim. Lá irei dentro em pouco. Só um incidente veio a fazer parte de A Cozinha. Aconteceu durante a primeira semana de férias da Edie, depois de eu ter sido promovido a cozinheiro de pequenos-almoços. Levantava-me às 6h30 […] Era saudado por um hotel vazio e eu gostava daquilo. Sem ninguém à excepção de Jack, o ajudante do turno da noite e Bob, o velho criado que era sempre o primeiro a chegar de manhã para ir pôr as mesas… era também o último a sair. Desde os meus tempos na construção civil que eu gostava dos começos matinais, o lento acordar da vida, o um por um, o pedaço a pedaço. Ligar o aquecedor de pratos, carregar o elevador da comida, puxar a corda, subir para descarregar, arrumar a comida para se manter quente, sentir a sala silenciosa a animar-se, estrelar ovos para preparar a hora de mais trabalho. Ia ficando mais quente à medida que a actividade aumentava. Os primeiros pedidos chegavam devagar – conseguíamos lavar os pratos e as chávenas a um ritmo normal – depois com mais velocidade, mais intensidade, os pedidos em voz baixa transformavam-se em gritos. O pequeno-almoço estava a sair! Ritmo! Balanço! Suor! Temperamento! Tal qual o lento começar do trabalho no filme musical Um Dia em Nova Iorque – o primeiro grande musical que vi - com a sua sequência de abertura em que os estivadores vão chegando ao trabalho um a um, que termina com o regresso à vida do navio de guerra de onde saem a correr os marinheiros para gozar o seu dia de folga em Nova Iorque. Um dia em Nova Iorque, pensava eu, tinha sido a inspiração para a sequência de abertura d’A Cozinha. Não foi bem assim. Essas aberturas lentas começaram no Hotel Bell muito antes de eu ter visto o musical de Bernstein.
Aparte: desde o início que tive este fascínio por começos! “Era uma vez, quando o mundo era novo…” Fiz um filme de 8mm de Hill House, chamado Manhã, com uma câmara que pedi emprestada a um elemento de um clube de cinema amador. Era um filme sobre começos. Obriguei toda a gente a levantar-se antes de madrugada, trepei a uma árvore para filmar o nascer do sol sobre o horizonte, levei a Della e o Ralph à loucura por lhes pedir que acordassem e se espreguiçassem, voltassem a deitar-se, levantarem-se e espreguiçarem-se, voltarem a deitar-se até conseguir o que queria. […] Começos, desenvolvimentos, as razões por que, o processo de crescimento, desenvolvimento… todas estas coisas atraíram a minha atenção.
Entre as primeiras pessoas a quem servia pequenos-almoços estavam as empregadas dos quartos. [E agora vão ler o post de 17 de Abril – Comprimidos e abortos.] Claro que sabia! Barulhento, vociferante, exaltado, gesticulando exuberantemente, e dogmático sem aceitar contradição. Dei o discurso a Max, o talhante em A Cozinha. Intolerante!
O hotel parecia ter sido escolhido por Deus como Seu campo de jogos, pois as coisas aconteciam ininterruptamente, o mundo tinha o seu espelho: revoltas emocionais, estados psicológicos, confrontações que iam do ridículo ao patológico. Tive dificuldades em manter-me agarrado a um sentido de normalidade e, de facto, não consegui. Os meus sentimentos iam do desnorte à luxúria, da zanga ao fascínio, do divertimento à culpa. As tensões opostas que animavam o grupo de personalidades – e ainda não as descrevi todas – faziam-me pensar se era eu o ridículo, o louco.

“Pois sentia-me estranho àquilo tudo, se bem que desejasse ser um deles.”

Tinha-me esquecido destas palavras, escritas em 1954, quando redigi O Prólogo, em 1993.

“Neste estado toda a gente que conheço se transforma num estranho. É uma sensação deprimente uma vez que quero estar aqui, quero fazer parte.”

O Albert estava apaixonado

A situação mais absurda em que me vi envolvido foi com Albert, cujo fraquinho por mim estava acrescer a pontos de deixar de ter piada, mas só por volta da hora do almoço do dia sangrento é que percebi em que ponto a coisa já ia. Tínhamos feito subir o almoço para Tom no elevador. O Gordon e eu – era o dia de folga do Jimmy gorducho – estávamos a arrumar os destroços da cozinha depois de se ter feito o almoço Estava a preparar-me para atacar a despensa de balde e esfregona. Albert veio do seu território – a destilaria – e dirigiu-se para o moinho do café. Gordon, que andava na rua, apareceu de repente.
-Oh! – gritou. – Desculpa, fofo. Não sabia que estavam aqui os dois. Querem que os deixe e feche a porta?
- Quem me dera! – Respondeu Albert, deitando-me um olhar carregado de insinuações. – Nada me agradaria mais!
- Trata da despensa! – Ordenei ao Gordon, atirando-lhe a vassoura. – Eu trato da cozinha. O homem mete-me medo.
Eles riram-se e trocaram comentários e eu saí o mais depressa que consegui.
Mais tarde, Gordon na conversa com Albert enquanto subiam as escadas:
- Continua a tentar, fofo, vais acabar por conseguir.
- O tanas! – Gritei. O Albert desapareceu e eu agarrei o Gordon pelos colarinhos. – Pára de o incentivares!
- Só estava a tentar ajudar. Pobre rapariga. Tu provoca-lo e depois dás-lhe uma tampa.
- Eu? – Gritei. – O homem não precisa que o provoquem, tem estado a viver do amor à primeira vista desde o dia em que aqui entrou. – Diz-me, achas que tenho ar de maricas? – Rimo-nos e encerrámos o assunto.
O facto de existirem homossexuais entre o pessoal com que eu trabalhava e que este tipo de assédio ocorresse tornava a vida da cozinha interessante, intensa, variada e… estranha. Gostava deles, o Gordon e eu tornámo-nos amigos, mas havia uma certa amargura na sua tolerância. Era tolerância sob sofrimento. Como se não existisse alternativa. Tinham de aceitar as pequenas brincadeiras de uma forma que eu nunca teria aceitado aquelas insinuações acerca de judeus. Eu também não estava inocente de momentos de afectação.
- Não sentes que há uma certa loucura nisto tudo? – perguntei ao Gordon.
- Tudo o quê?
- Ninguém parece normal. Temos prostitutas, raparigas a fazerem abortos, casamentos infelizes, maricas, alcoólicos… há de tudo. Quando pensas nisso, não sentes que é um tanto irreal? – Eu ainda não tinha aprendido a apreciar os prazeres da variedade dos homens. O artista romântico dentro de mim estava esboçado, o artista confrontador do caos desejava estabelecer a ordem.
Durante muito tempo aceitei a função tradicional da arte como forma de criar ordem a partir do caos. Claro que não uma ordem perfeita a partir de um caos absoluto; para além do mais, o caos não tem fim e a ordem é relativa. Mas arte enquanto criação de um pequenino espaço de ordem no meio de um mundo de caos, nisso acreditei. Hoje em dia já não tenho a certeza. Talvez seja suficiente descrever o caos e a descrição é uma contribuição para que seja ordenado, uma vez que identificar um problema é metade da sua solução.
Não interessa, começaram a acontecer coisas estranhas. E eu comecei a escrever às escondidas.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

Aviso à navegação...



Há avisos importantes na Cozinha... Vão lá ver os pratos que a Bruxa vos preparou...
Dentro de muito pouco tempo estará aqui o final do Capítulo Dezassete da autobiografia do Empregado do Mês. Atenção a isso também!

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Atenção, avaliações à vista...

À medida que foram tendo as sessões de trabalho individuais, POR FAVOR, mandem o trabalho que fizeram nas aulas à Bruxa. Neste momento, faltam-me trabalhos corrigidos de alguns dos alunos que já fizeram essas sessões... Preciso de tudo na caixa do correio até à meia-noite de quinta-feira. A reunião de avaliação é no sábado. Vão às vossas caixas do correio e lá encontrarão uma mensagem a dizer de quem me falta trabalho...

terça-feira, 15 de maio de 2007

Como vai por aqui alguma confusão...

Angry Young Men – Jovens zangados

A expressão aplica-se a um grupo de autores ingleses dos anos 50 cujos heróis têm em comum uma atitude de rebeldia e de crítica em relação à sociedade em que vivem. Esta expressão, retirada originalmente do título da autobiografia de Leslie Allen Paul, Angry Young Man (1951), tornou-se popular com a estreia da peça de John Osborne, Look Back in Anger (1956). O termo anger (zanga) é capaz de não ser o mais apropriado: discrepante ou descontente talvez sejam melhores e mais correctos. O grupo não só expressava o seu descontentamento para com as instituições graves e hipócritas da sociedade inglesa – o chamado Establishment – como também deixava transparecer alguma desilusão consigo próprio e a sua obra. Entre os jovens zangados encontramos os dramaturgos John Osborne e Arnold Wesker e os romancistas Kingsley Amis, John Braine, John Wain e Alam Sillitoe. Durante a década de 60, estes autores passaram a tratar de temas mais individualizados e deixaram de ser vistos enquanto grupo.

The Columbia Encyclopedia, 6th Edition, 2006.

Tem a palavra o autor...



INTRODUÇÃO E NOTAS PARA O PRODUTOR





As longas explicações que sou forçado a fazer podem ser irritantes. Lamento, mas são necessárias. Esta peça é acerca de uma grande cozinha num restaurante chamado Tivoli. Todas as cozinhas, especialmente durante o serviço, enlouquecem. Há a pressa, há as pequenas disputas, resmunguices, falsos orgulhos e pretensiosismo. O pessoal da cozinha, instintivamente, odeia o pessoal da sala de jantar, e todos eles odeiam o cliente. O cliente é o inimigo pessoal. Para Shakespeare o mundo podia ser um palco mas para mim é uma cozinha, onde as pessoas vão e vêm e não podem ficar o tempo suficiente para se compreenderem umas às outras, e onde as amizades, amores e ódios se esquecem com a mesma rapidez com que se fazem.
Aqui, a qualidade da comida não é tão importante quanto a rapidez com que é servida. Cada pessoa tem a sua função específica. Deitamos uma olhadela a cada um, fazendo-o sobressair como se fosse o indivíduo. Mas se bem que possamos observar uma só ou um grupo de pessoas, o resto do pessoal da cozinha não o faz. Continua o seu trabalho.
Por isso, e uma vez que a actividade da cozinha tem de se manter enquanto a acção principal se desenrola, estudaremos, em conjunto com um diagrama da cozinha, quem entra e o que faz.
As empregadas de mesa passam a manhã a trabalhar na sala de jantar, antes de almoçarem. Mas, ao longo de toda a manhã, há três ou quatro que entram e saem transportando copos da copa para a sala de jantar e executando tarefas que são descritas no decorrer da peça. Durante o período do serviço de refeições, as empregadas estão continuamente a entrar e a sair da sala e a pedir pratos variados aos cozinheiros. Os pratos são servidos em bandejas prateadas e as empregadas tiram cerca de seis pratos do aquecedor de pratos, mesmo por baixo do balcão de serviço. Os ajudantes reforçam constantemente o número de pratos dentro do aquecedor. As empregadas são extremamente eficientes. Fazem um circuito pela cozinha pedindo em cada bloco aquilo de que precisam. Andam depressa e transportam nos braços grandes quantidades de pratos.
Os ajudantes de cozinha, que são uma mistura de cipriotas e malteses, encontram-se divididos em várias secções. Em primeiro lugar temos os que lavam a louça, talheres, panelas e pratos nas máquinas. Esses não vemos. Para o nosso objectivo, utilizaremos apenas um ajudante, que está continuamente a repor pratos limpos debaixo do balcão de serviço para que as empregadas possam retirá-los sempre que é preciso. Também varre o chão de vez em quando e espalha serradura.
Raramente vemos a mulher que serve os queijos, as sobremesas e o café ao fundo, através da divisória de vidro, mas de vez em quando ela vem até ao bloco de pastelaria para se reabastecer de tartes e bolos.
Agora, o cozinheiro. Neste ponto, há que sublinhar que nunca se usa comida verdadeira. Cozinhar e servir comida não é de todo prático. Assim sendo, as empregadas de mesa transportarão pratos vazios e os cozinheiros mimarão a sua actividade. Sendo que os cozinheiros são as personagens centrais da peça, farei agora um esboço da sua actividade, para que, enquanto a acção principal da peça se desenrola, eles tenham sempre qualquer coisa para fazer.

NOTA

A secção que trata do serviço e que começa na página 41 com “Duas costeletas de vitela” é, na realidade, a encenação de John Dexter baseada no que foi apenas um esquema indicativo que esbocei. Desejo reconhecer a sua autoria deste padrão de trabalho.
O serviço divide-se em três fases, de velocidade crescente.
1. de “Duas costeletas de vitela” (p. 41) até Gaston dizer “Max, manda aí bifes e costeletas de borrego depressa” (p. 46) o ritmo é enérgico mas lento.
2. Desse momento até Peter dizer “Estás velha, muito velha meu amor. Vai para casa velhota... isto é trabalho para jovens…. Vai para casa.” (p. 50), o ritmo aumenta.
3. Daí até ao final da secção “Ficaram todos a porra de uns loucos furiosos, completamente doidos!” (p. 55) o ritmo é rápido e febril.
Se tiverem dificuldades em encontrar estes ritmos, terão de procurar o ritmo certo e que funcione.
Todos os produtores são livres de transformarem este cenário num cenário abstracto se conseguirem, mesmo assim, manter a atmosfera.

Esboço das personagens por ordem dos blocos *


FRANK
ALFREDO
HANS
PETER
KEVIN
GASTON
MICHAEL
BERTHA
MANGOLIS
ANNE
NICHOLAS
RAYMOND e PAUL
CHEF
MARANGO


* Aqui, a Bruxa, bruxa que é, cortou as indicações do autor. Esse trabalho está a ser feito com o prof. Desgraça...



As acções

Para se conseguir realizar a acção desta peça, os seguintes pratos foram atribuídos aos seguintes cozinheiros. Claro que não podem executar todas as acções necessárias à confecção destes pratos. As duas coisas importantes são:
1. Que tenham acções para mimar ao longo da peça, no intervalo entre as suas falas e conversas uns com os outros
e que
2. No momento em que o serviço estiver prestes a começar, tenham cada um uma série de bandejas bem arranjadas e taças com “pratos e molhos” prontas a responder aos pedidos das empregadas.



FRANK – Faisão assado/batas fritas. Frango assado/batatas salteadas. Cogumelos. Deitar sal em vinte frangos e colocá-las no forno. Cortar cenouras e cebolas e fervê-las para fazer molho. Salgar os faisões e pô-los no forno. (As duas carcaças foram limpas noutro sítio qualquer). Cortar cogumelos às fatias e saltear com mais legumes.

ALFREDO – Vitela assada/esparguete. Presunto cozido/batatas cozidas. Rosbife para o pessoal. Tempera e assa no forno vitela e vaca. Coze o esparguete em água com sal. Corta cebolas e cenouras para fazer molho. Põe o presunto na panela para cozer.

HANS – Salsichas/arroz de forno. Costeletas de porco/feijão branco. Legumes para o pessoal. Corta o presunto, tomates, cebolas e cogumelos e faz o salteado para o arroz. Coze o feijão branco. Frita as costeletas de porco durante o serviço. Vai ao guarde-manger buscar os legumes do dia anterior para o pessoal e aquece-os.

PETER – Mista de peixe/molho. Bacalhau meunière/batatas cozidas. Rodovalho cozido/molho holandês. Bate gemas de ovos em lume brando e junta a margarina derretida para fazer o molho holandês. Isto leva muito tempo. Corta o bacalhau e o rodovalho em porções. Corta limão às rodelas para guarnecer os pratos.

KEVIN – Sardinhas grelhadas/batatas cozidas. Salmão grelhado/ batatas cozidas. Linguado frito/batatas fritas ou cozidas. Corta limão às rodelas para guarnecer o linguado. Corta o salmão em porções. Dispõe quatro bandejas em cima da bancada de trabalho: uma para o azeite, outra para o leite, uma para a farinha e outra para o peixe que é pedido. Limpa o grelhador com uma escova de arame.

GASTON – Costeletas fritas/batatas fritas. Bife grelhado/batatas fritas. A maior parte do seu trabalho é feita durante o serviço. Limpa o grelhador com uma escova de arame. Vai buscar legumes ao guarde-manger e branqueia as batatas para fritar. Ajuda Kevin.

MICHAEL – Hambúrguer/ ovo a cavalo/batatas fritas. Omeleta de fiambre. Sopa de cebola. Corta o fiambre para a omoleta. Faz cubos de pão duro para a sopa de cebola. Parte os ovos para uma taça de metal para fazer as omoletas. Presumimos que há sopa da véspera em quantidade suficiente.

MAX – A maior parte do tempo está a carregar grandes carcaças de carne da câmara frigorífica para a bancada, onde as desmancha e corta.

NICHOLAS – Rosbide frio/salada de batata. Fiambre frio/ salada russa. Trincha as carnes e prepara várias travessas de salada. Também trabalha a carne picada para fazer os hambúrgueres para Michael.

CHEF – Faz sobretudo trabalho administrativo e de coordenação, claro. Fecha-se consigo próprio tanto quanto possível.

PAUL e RAYMOND – Fatias de tarte de maçã e de pêra. Éclairs. Começam por levar ao forno em bandejas, as tartes que ficaram preparadas no dia anterior. Espalham o molho de custarda e fatiam fruta para pôr por cima. Fazem mais bolos; misturam farinha e gordura, juntam água, amassam, tendem. Cartam mais fatias para o dia seguinte. Recheiam os bolos com natas, com um saco de pasteleiro. Descascam fruta.

BERTHA – É de presumir que todos os seus legumes, couves, espinafres e legumes para o salteado ficaram cozinhados no dia anterior. Ela só tem de os aquecer. No resto do tempo, tagarela com a mulher do café.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 4

Irene e Shakespeare

A Irene era uma coisinha baixinha, bonita, que caminhava dobrada como se fosse um S, com a barriga espetada, era acanhada e desastrada; tinha grandes olhos sonolentos; o cabelo mal preso pela manhã, mas muito bem arranjado durante a tarde. Pouco diplomática mas com um coração generoso – “Não acredito que alguém seja mesmo mau, há sempre uma razão qualquer…” – e um sentido de humor atrevido – “Oh, claro que tenho de ter um namorado! Não conseguia viver sem isso!” – Estava a perder a paciência com o que tinha na altura.

“O meu namorado diz que eu sou fácil! Não sou, pois não?” Respondi-lhe que ainda não sabia. Ela está sempre a falar do namorado, do que ele diz. Uma espécie de Tomlinson. [poema de Kipling]. “Ouvi isto e li aquilo…” e o namorado parece estar sempre a falar de outras mulheres. O que a aborrece.
“Oh, fico com tantos ciúmes! E não me importava, mas as raparigas de que ele está sempre a falar não são nada bonitas. Às vezes, fico mesmo zangada e pergunto-lho porque é que não vai com elas se gosta tanto delas. Ora, é assim, não é? Mas ele diz-me sempre que me ama, que estava só na brincadeira. É claro que não acredito nele. Todos os homens dizem o mesmo mas não sei…” Ela é a ingenuidade em pessoa mas é sincera e leal – pelo menos para mim… “Não gosto de mulheres maliciosas, dou-me bem com as outras mulheres, dou, sabes, mas há uma coisa de que não gosto nelas é que gostam de homens!”
Rimo-nos os dois, mas, para ela, isto não era só uma piada, era um facto! Era uma coisa de que ela não gostava em todas as mulheres.
“O Ray está sempre a perguntar-me se o amo e claro que lhe respondo que sim, que nunca gostaria de outro homem, só para o manter calado. Depois pergunta-me porque é que o amo. Costumava dizer-lhe que ele era diferente e assim... mas agora ele continua a perguntar e eu já não lhe consigo responder. Fartei-me de lhe responder. Não sei porque é que o amo. Pensando bem... ele obrigou-me!... hábito, calculo. Por isso, mudei e agora respondo-lhe que não sei. Ray, tu não és diferente dos outros. E ele continua a falar de querer casar com uma mulher virgem. Será que todos querem? Parece que se esquecem de que as mulheres também podiam querer casar com homens virgens."
"E querem? As mulheres não querem um homem com experiência?"
"Bom... não sei. Às vezes. Queres que a tua mulher seja virgem?"
Só quero que ela goste de mim. Tenho poucos preconceitos!”

Levei Irene a ver uma produção itinerante de O Mercador de Veneza no teatro Royal, encenado por um homem de que nunca tinha ouvido falar, um tal Peter Hall, com o papel de Shylock feito por um actor de que, mais tarde, ouvi falar e que, ainda mais tarde, vim a amaldiçoar diariamente – Tony Church, um dos signatários da carta a favor dos actores da Royal Shakespeare Company que se recusaram a fazer Os Jornalistas. Não tenho qualquer registo do que pensei sobre este espectáculo, só me lembro que Irene, que não sabia nada da peça, ficou agitada quando chegou à altura de Bassânio escolher o cofre. Excitadíssima, agarrou-se ao meu braço, sussurrando: “Achas que ele vai escolher o certo? Vai? Achas?” E ficou felicíssima quando ele o fez. Durante a cena no tribunal desviou os olhos no momento em que Shylock se preparava para cortar o seu penhor do peito de António. Nunca me tinha ocorrido que alguém pudesse não conhecer a história de Shylock, do mercador e da libra de carne. Depois de uma noite assim como poderíamos não ter feito amor? A minha primeira vez em muito tempo. Na manhã seguinte, andei aos saltos enquanto preparava os pequenos-almoços, animado por uma fome saciada. Muito obrigado, senhor Shakespeare, mas não a si, senhor Church, apesar de tudo!

quinta-feira, 10 de maio de 2007

O pão de cada dia... uma visão de A Cozinha

Introdução

Existe uma opinião generalizada de que Arnold Wesker é um dramaturgo simples que escreve peças simples – sendo “simples” um sinónimo paternalista de “óbvio” e “fácil”. A maior parte desta simplicidade é um cisco no olho do observador mais crítico, que ignora e adapta o que vê de forma a encaixá-lo nas suas próprias ideias preconcebidas, mas que estará cheio de sorte se conseguir preservar a sua própria simplificação sem ”enfiar” uma série de inconsistências no trabalho de Wesker durante esse processo. Uma análise mais cuidada das próprias peças sugere um quadro diferente: e esperamos, ao longo da discussão dos seus temas, caracterização, estrutura e linguagem, mostrar quão superficial e enganadora essa impressão de simplicidade é de facto – na verdade, é não só enganadora como irónica, pois um dos tópicos a que Wesker regressa mais consistentemente é a complexidade das escolhas e pequenos ajustamentos que todas as suas personagens pensantes têm de fazer. […]
Como disse Kenneth Tynan […] Wesker tem o poder de mostrar como as coisas são e, ao mesmo tempo, como poderiam ter sido. A complexidade que emerge desta rara capacidade é o que Wesker parece identificar quando diz:

"O optimismo é a arte não dos finais felizes e exclamações de alegria, mas do reconhecimento de verdades – verdades secundárias – quer sejam tristes ou não."

O pão-nosso de cada dia…

A Cozinha

Se bem que algumas das peças mais tardias de Wesker – nomeadamente Their Very Own and Golden City e Amigos – tenham tido vários rascunhos antes de serem encontradas no palco ou na edição, só A Cozinha foi realmente encenada e publicada em versões diferentes. Destas, a mais antiga e mais curta foi levada à cena no Royal Court enquanto espectáculo sem cenário no dia 13 de Setembro de 1959, e o texto revisto e mais substancial teve a sua estreia no dia 27 de Junho de 1961, numa carreira curta no mesmo teatro. É esta segunda versão que analisaremos aqui, uma vez que os acrescentos que Wesker fez – que tornam a peça cerca de 25% mais longa – amplificam em vez de modificar o que se possa pensar sobre a primeira. Seja como for, explicar exageradamente alguns pormenores textuais seria negar espaço às reais e substantivas complexidades da peça.
Aqui basta que apontemos as alterações mais importantes, das quais a primeira consiste numa elaboração mais pormenorizada do diálogo que apresenta a cozinha. Este, coloca a peça na “grande cozinha de um restaurante chamado Tivoli” – um local evidentemente concebido para produzir comida pré-fabricada e em grande quantidade – e apresenta os cozinheiros, que lentamente se deslocam para os seus blocos à medida que se aproxima a hora caótica de preparar o serviço do almoço. Então, à medida que o ritmo acelera rapidamente, Wesker passa a apresentar breves visões de empregadas e cozinheiros a trabalhar no máximo da força para acompanhar as exigências da sala de jantar, no que vem a ser um libretto da mais pormenorizada orquestração de idas e vindas que John Dexter criou em ensaio para este complicado mas muito necessário episódio. E, por fim, o contraste com todas estas idas e vindas sentido durante o “interlúdio” da peça, que – a cumprir o desejo do dramaturgo de ver a peça apresentada sem intervalo se segue de imediato à alucinada conclusão da primeira parte – é mais claro, visível e bem apoiado.
Até mesmo este interlúdio – que se dissolve lentamente no segundo acto, à medida que o mais calmo serviço de jantar se aproxima – se passa na própria cozinha, de onde alguns cozinheiros, demasiado exaustos ou demasiado longe de casa, não têm forças para sair para fazer uma breve interrupção. Pois “a cozinha está sempre aqui”. E é esta rotina quotidiana de trabalho enfadonho, alguns conflitos ocasionais e pausas esporádicas - uma rotina quebrada apenas por aqueles poucos momentos deliberadamente mais dramáticos que contribuem para o seu clímax violento – que é, de facto, a substância da acção. Neste sentido, A Cozinha é, a um tempo, realista e representativa: pois a capacidade de cada encenador de conter uma acção que se aproxima tanto do realismo documental no seu pormenor da rotina da cozinha numa forma que se aproxima do expressionismo – em particular na forma de relacionar as armadilhas esmagadoramente mecanicistas do local com as reacções humanas que provoca e a que dá forma – tem sido determinante para o sucesso da peça em espectáculo.

Já houve quem afirmasse que não existe em nenhum restaurante uma cozinha semelhante à do Tivoli de Wesker: e alguns dos pratos da evidentemente extensa ementa não são do género dos que esperaríamos encontrar numa linha de montagem gastronómica com o alegado ritmo de produção de duas mil refeições por dia. Mas mesmo que não concedamos a Wesker, com cerca de quatro anos de experiência em torno desses pratos, a possibilidade de ter mais razão neste ponto do que os seus críticos, dadas as hipóteses formais que estão na base da peça, a incongruência pouco importa. O Tivoli não é apenas uma cozinha: é, eponimamente, a cozinha – e um microcosmo, talvez, da sociedade que serve. Wesker comenta:

"Para Shakespeare o mundo podia ser um palco mas para mim é uma cozinha, onde as pessoas vão e vêm e não podem ficar o tempo suficiente para se compreenderem umas às outras, e onde as amizades, amores e ódios se esquecem com a mesma rapidez com que se fazem." [Introdução de A Cozinha]

E aqui, Peter, o cozinheiro alemão, sublinha a omnipresença do local

"Este… este manicómio está sempre aqui. Quando te fores embora, quando eu me for embora, quando o Dimitri se for… esta cozinha fica. E vai continuar depois de nós morrermos, pensa nisso. Trabalhamos aqui… oito horas por dia e, no entanto… não é nada. Ficamos com nada. Aqui… a cozinha, aqui… tu. Tu e a cozinha. E a cozinha não significa nada para ti como tu não significas nada para a cozinha."

Peter tem, de si, um temperamento naturalmente explosivo e errático: e isto, claro, é acentuado pela tensão das condições em que trabalha. Ao mesmo tempo, é tanto uma consequência “real” do calor e barulho da cozinha e funcionalmente adequado à peça que as características dos outros cozinheiros, sob pressão, sejam aumentadas em maior ou menor escala. “Todas as cozinhas, em especial durante o serviço, enlouquecem,” afirma Wesker, e até mesmo o menos assertivo dos cozinheiros que criou, Michael, é descrito como “marcado por uma certa loucura” que é comum a todos na sua profissão.
Tal como acontece com Michael, cada personagem, de Marango, o proprietário – para quem a cozinha é uma espécie de extensão umbilical de si próprio – até a Mangolis, o ajudante, e do Chefe até à nova empregada, tem a sua biografia no texto que antecede o diálogo da peça. Na realidade, todas as gradações e pequenas diferenças de carácter que Wesker especifica podem parecer, à primeira vista, supérfluas numa obra que tem por definição a ideia de que as condições impuseram, no mínimo, uma certa superficialidade, e no máximo, uma absoluta impessoalidade às relações entre as pessoas – uma peça em que, além do mais, nenhuma personagem para além de Peter entre as cerca de trinta que são referidas por nome na lista de personagens, é dramaticamente muito mais importante do que qualquer das outras.
[…]
Para o público as personagens só vivem dentro da cozinha – tanto mais que uma boa parte do seu tempo livre ocorre durante a tarde e, por isso, é também passada à sombra da cozinha ou na sua proximidade. A um tempo a cozinha exige e revela dramaticamente o tempo e as energias dos seus empregados, a estreiteza dos seus limites, criando uma imagem teatralmente muito viva, ensombra até mesmo as suas poucas recordações de qualquer actividade tida à margem dos seus dias e rotinas. Até mesmo a necessidade de mimar muita da actividade prática do sítio [i.e. preparação e confecção de alimentos] se transforma numa virtude positiva neste aspecto, uma vez que aqui o efeito é de distanciamento, aumentando assim a consciência da natureza das operações que são, tanto quanto vemos, absolutamente realistas mas que, no entanto, uma vez que estão desprovidas de todo o supérfluo, são também estilizadas.
Há três factores que contribuem para que vejamos a cozinha como um manicómio: mas destes, o que se manifesta com maior clareza – o comportamento das personagens – não é mais do que uma consequência de um processo de condicionamento que os outros dois se combinaram para perpetuar. No entanto, o próprio comportamento-sob-pressão se torna um agente activo e alimenta o clima de frenesim de que começou por ser resposta: tanto assim é que, na acção tal como a vemos, causa e efeito são praticamente inseparáveis. Quase tão dominante em termos dramáticos, se bem que mais fáceis de ignorar quando se lê a peça em vez de a ver no palco, são, em primeiro lugar, o carácter opressivo da cozinha enquanto local com uma vida predatória própria, e em segundo, atravessando tudo, o permanente barulho dos fogões e fornos.
[…]
Há que realçar que só no gesto de frustração e desafio contra a sua amante, a sua condição e a própria cozinha este dia difere de um qualquer outro. Os pontos de ênfase dramática – a chegada, de manhã, de um novo cozinheiro, Kevin, um esporádico longo discurso de Paul perto do fim do interlúdio e, ao longo de toda a peça, a discussão entre Peter e Monique – nascem com naturalidade dos ritmos da rotina da cozinha, em que as personagens se integram instintivamente, como se de um velho hábito se tratasse. Também é de notar que o acesso de fúria de Peter não tenha sido desencadeado por uma qualquer situação traumática na sua relação com Monique. É verdade que a crescente preferência que a rapariga vai mostrando pela pouco exigente segurança que o marido lhe oferece, em oposição às dificuldades do seu tempestuoso amor por Peter são um importante factor. Mas é a aparentemente trivial questiúncula com uma empregada [Violet] – que retira dois pratos de rodovalho do bloco de Peter em vez de esperar pela sua vez de ser atendida – que precipita a sua reacção violenta. A cozinha provoca-a e a cozinha aguenta o seu impacto.

Glenda LEEMING, Simon TRUSSLER, The Plays of Arnold Wesker, Londres, Victor Gollancz, 1971
(Pp. 9 – 31)

terça-feira, 8 de maio de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 3

Os Outros – Nick

Havia mais gente a pairar naquela cozinha: um assistente de cozinheiro em part-time, Jimmy, um homem roliço, tímido e gorducho; o pequeno esgalgado e resmungão Jimmy Moore, que lavava a louça e vivia a queixar-se da forma como todos aqueles que têm trabalhos degradantes se queixam para tentar restabelecer a sua dignidade. Ele idolatrava Tom que tinha algum cuidado com ele.
- Moore! Anda cá, Moore, rai’s te partam!
- Sim. Bullock. Vou já, Bullock. - Isto já durava havia catorze anos. Tom gostava dos desgraçados.
Albert, outro lavador de louça, gay e também agarrado à mãe, ia aos chás da tarde e apaixonou-se perdidamente por mim. Quanto mais brincava e troçava dele, mais ele me perseguia. Edie, a cozinheira dos pequenos-almoços, uma mulher casada, com ar de cigana e gasta, com uma sensualidade latente e com quem penso que Tom tinha um caso. Com toda a certeza, ele desejava-a. Ela teve um fraquinho por mim e namoriscávamos… homem jovem, mulher mais velha. Tom ficou ciumento mas não podia revelar-se demasiado verde [ciumento vd. Othello de Shakespeare] com medo de revelar os seus verdadeiros sentimentos. Um dia, confiaram-lhe um aprendiz de cozinheiro, Nick. O rapaz tinha cadastro e esta aprendizagem fazia parte da sua liberdade condicional. Tom adorou esta nova imagem de protector, se bem que Nick fosse obtuso – doce mas lúgubre. Tornei-me uma espécie de irmão adoptivo mais velho. As empregadas de mesa – Irene, Rene, Dolly, Winnie; um empregado de mesa já antigo, Bob, e um chefe de mesa, o mais devasso dos homens, que quando as encontrava, fazia sexo com todas as mulheres da casa nos corredores, armazéns e em cima das mesas. Algures na costa de East Anglia, tem hoje uma casa de campo com uma decoração monstruosa.
Nick, de quem fiz de irmão há muito perdido, tinha uma mentalidade de um género sobre o qual me debrucei durante muito tempo. “Obtuso” é uma palavra demasiado fácil para o descrever. Pode ser aflitivo gozar de capacidades mentais limitadas mas não é crime ter-se nascido estúpido. Pondo a coisa de forma positiva, existem pessoas que têm recursos intelectuais escassos mas cuja companhia pode ser infinitamente mais agradável do que a de outros dotados mais generosamente. Nick era uma delas.
O conflito que atormenta muitos de nós que temos corações generosos desenrola-se entre a necessidade, o desejo de ver toda a Humanidade como toda igual e sensata e a experiência que nos mostra que grande parte dessa Humanidade é estúpida, irracional e muitas vezes cruel. O conflito entre querermos que toda a gente seja igual e a experiência do quotidiano que nos mostra claramente que as pessoas não são iguais. Isto custa e confunde e leva muitas pessoas a adoptar falsas atitudes e posições. Sabemos que todos nascemos com direitos iguais, mas isto não significa declarar que todos somos iguais. Toda a gente está consciente desta distinção, uma vez que vivemos as nossas vidas de manhã à noite, todos os dias, com base nesse facto: não pedimos a pessoas que sabemos serem incapazes de dar, não damos um emprego aos que sabemos não estarem habilitados para essa função, não nos tornamos amigos de gente que sabemos estar num plano intelectual mais elevado ou inferior ao nosso… a menos que estejamos preparados para ser forçados e desafiados por quem tenha um intelecto maior do que o nosso, ou preparados para sacrificar o estímulo intelectual em prol de um estímulo diferente.
As minhas notas registam as afirmações de Nick.

“Para além de não gostar de música clássica porque não tem melodia – mas faz-me pensar nas coisas, sabes, coisas que aconteceram ou podem vir a acontecer – às vezes dá-me cabo da cabeça… É um sentimento maravilhoso saber que podemos dar ordens a gente abaixo de nós. O sentimento do poder. Só o uso com brigões – odeio brigões…”

O que é que uma pessoa pode fazer perante afirmações destas? Por um lado, a afirmação absurda que a música clássica não tem melodia, por outro lado afirma que o faz vibrar. Por um lado afirma que não sente qualquer pejo em exercer o poder sobre outras pessoas, mas afirma que só gosta de o fazer com gente briguenta. Embrenhei-me em tortuosas conversas com ele. Era o final da noite. Eu estava de turno na lavagem da louça. Nick tinha acabado de chegar do cinema onde passava a maior parte do seu tempo livre e andava por ali, à espera da ceia. Tomei consciência de que estava a lavar pratos e cantarolei para o libertino residente que estava a passar naquele momento:

- “Quando penso como a minha luz se gastou…” - Parecia um pensamento adequado para quem tinha os braços enfiados em espuma de sabão. Virei-me para Nick. – Não sabias que o Milton disse isto, pois não?
- Não. Disse?
- Mas será que o disse enquanto estava a lavar a louça…?
- E se disse?
- Ah! Mas será que ele lavava louça para as Casas-Museu?
- Não sei. Lavava?
- Talvez sim.
- Não me interessa saber quem ele era.
- Não?
- Não! Porque é que há-de interessar? É um homem, só isso.
- Dizias o mesmo se fosse o Cromwell?
- Sim… um homem como os outros, como eu.
- As façanhas de uma pessoa não te importam?
- Não, nem uma.
- E os reformadores criminais?
- O quê?
- Não percebes que se não fossem eles tu tinhas sido enforcado por causa do teu crime?
- E depois?
- Isso não te importa?
- Porquê? Não me faz diferença, para a minha vida, não.
- Mas estarias morto. E não estavas aqui.
- E depois? Tinha sido enforcado.
Olhei para Nick com atenção. Era verdade, não se importava. Não estava nada impressionado.
- Diz-me, Nick, há alguma coisa que te interesse?
- Há. Montes de coisas.
- Como por exemplo?
- Oh, montes.
- Um exemplo.
- Música.
- Sabes alguma coisa de música?
- Não. Nada.
- Então, não te pode interessar. Interessaria se soubesses alguma coisa.
- O que é que eu posso fazer, na situação em que estou?
- Muito bem. Então que mais te interessa ou te impressiona?
- Oh, montes de coisas. Não me conheces. Não sabes nada de mim, só os meus pais sabem tudo acerca de mim, tudo, tudinho.
- Sabes Nick, se há que coisa que torne uma pessoa aborrecida é ela não se interessar por nada.
- Estou-me nas tintas se acham que sou um chato.
- Claro que não estás.
- Porquê? Que diferença faz?
- Felicidade.
- Felicidade?
- Sim, com as outras pessoas.
- Não quero saber como me dou com as outras pessoas.
- Ora, claro que queres. Queres e muito.
- Brr! Não me venhas com isso.

Era obviamente um jovem por quem eu tinha uma certa afeição e, ao mesmo tempo, não sabia lidar com ele. Os meus apontamentos continuam:

“… tenho a certeza de que não sabe ler mais do que é necessário para se manter vivo… mas é um rapaz estranho. Bem-intencionado mas com a inteligência mais tacanha que alguma vez conheci. Tem uma característica redentora: uma sensibilidade que o confunde e que não consegue transmitir a não ser por um comentário ou outro. Tem um cérebro de um miúdo que tivesse batido com a cabeça numa parede aos quatro anos e nunca mais tivesse recuperado. A sua sensibilidade manifestava-se na consciência das suas limitações. “Não sou tão espero como o teu sobrinho, Miles… aí tens!” [Na altura, Miles tinha cerca de seis anos]. Mal conseguia lidar com o facto da sua existência. “Não penso… não consigo pensar. A minha cabeça está vazia.” Odeia estar sozinho. Corre atrás da companhia mais breve, quanto mais não seja para passar uns minutinhos na sala do pessoal, onde as empregadas mudam de roupa, ou comigo na minha sala mesmo que eu esteja a trabalhar, só quer estar sentado perto de alguém…”

É interessante que tenha usado a palavra “trabalhar” em vez de “escrever”. Se bem que não fosse profissional, ainda continuava a considerar a escrita como sendo a minha ocupação.

“… fica ali sentado, sem fazer nada, a olhar ou a dizer uma coisa ou outra, sem qualquer relevância. Sinto que nunca está a pensar, apenas a absorver as imagens que estão ao alcance do seu olhar. Diz uma coisa qualquer sobre o que tem na mão, a sua situação financeira, a tentativa de deixar de fumar. A sua conversa consiste em comentários em lugar de pensamentos. Nunca chegou a uma conclusão só por si: apenas a viu escrita ou ouviu falar dela. Pouco faz que não esteja assente no pensamento de outra pessoa – o Harry disse isto, o Tom aquilo, ou o sr. Taylor comentou… Quanto mais penso nele, mais patético e incrível este rapaz se torna. Alto, desajeitado, sentindo o que é bom se bem que incapaz de apoiar os seus sentimentos numa qualquer ideia.”

Depois de ele ter saído do Bell eu nunca mais o vi.
(Pp. 326-329)

quinta-feira, 26 de abril de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 2

A personalidade dominante era Tom Bullock, o Chefe – exuberante, egocêntrico, convencido, intolerante, bem-disposto, pouco interessado nos outros. À primeira vista, a sua jovialidade encantava, até se tornar notório que o seu interesse pelo nosso bem-estar se devia mais ao seu desejo de impressionar do que à sua curiosidade por nós. Ele provocava admiração com a sua democracia ostensiva. Odiava a subserviência e estava ansioso por mostrar aos outros que não a pedia a ninguém. Esperava dos que conhecia uma relação amigável e informal, e fazia-o saber desde logo. Mas rapidamente se queixava da informalidade que pedia. A sua fome de afeição imediata deixava-o exposto àquela alegria espalhafatosa e insensível que rapidamente degenera em abuso. Nunca aprendeu a lição do desprezo que ensombra a familiaridade: e sofria com isso.
Mas ele saltava, como um rapazinho, cheio de partidas e brincadeiras, que adorava que nós apreciássemos. Fosse como fosse, ele era divertido. E agitado. Em permanente movimento, um pequeno sapateado aqui, outro ali, um rápido passar de um braço pela cintura de uma das empregadas para um abraço, um beliscão num rabo, o tipo de acções que provocam franzires de sobrancelhas nestes tempos confusos quanto a decidir o que é divertimento e alegria e o que é lascívia condenável. Na maior parte dos locais de trabalho as duas coisas andam juntas, mas naquele tempo, a maior parte de nós sabia a diferença. Os homens comunicavam e as mulheres sabiam quando o toque era inocente, se era seguro e o afecto – e até mesmo um curioso respeito – residia na forma. Tom era, com toda a certeza, delicado se bem que espalhafatoso – não tinha nada de grosseiro ou brutal. Excepto com a mulher.
Nunca ficava de fora de uma conversa, tinha um tom assertivo e doutoral e irritava toda a gente com factos incontroversos – que ninguém tivesse dúvidas! – conhecia sempre alguém que era alguém, os que estavam no topo da sua profissão, da sua esfera de actividade. Nunca conhecia segundos classificados, só os vencedores em cada área. Richard Trauber era o melhor tenor que alguma vez existiu ou existirá – Tom nunca tinha ouvido falar de Jussi Björling, mas não interessava: “Não quero saber do que dizes, é o melhor que já existiu ou existirá.” O seu anterior patrão foi, a certa altura, o ciclista mais rápido do mundo. Os filmes americanos eram os melhores alguma vez feitos e não dava um tostão por nenhum filme que os ingleses, franceses, ou alemães ou russos fizessem. “E eu sou representativo do homem da rua,” era o seu grande argumento à mesa, em volta da qual todos nos sentávamos na apinhada sala do pessoal, “ e é o homem da rua quem decide o que é bom e mau. É o dinheiro que ele paga que conta, não se pode discutir com o que entra na bilheteira”. A discussão era velha e interminável e irresolúvel. Vindos de Tom esses pontos de vista, como os de muita gente, eram proclamações insistentes de quem ele pensava que era, mais do que argumentos racionais e sólidos. Efémeros, também. Atirados ao ar e logo esquecidos.
Mas o homem não. O homem era cheio de cor e contradições, e era recordado, o que, penso, era o seu maior desejo. Por um lado, intolerante, por outro… justo. Uma criança foi assassinada na Escócia e o caso fez manchete dos jornais. Uma mulherzinha que fazia a entrega das mercearias entrou pela porta da cozinha, vinda da rua, carregada de queijos e de uma indignação virtuosa em relação ao trágico acontecimento. “Acho que,” começou, “ele devia ser pendurado numa árvore onde toda a gente pudesse chegar e fazê-lo em postas, pois acho! Não há nada que seja demais para gente assim!” Ao que Tom explodiu: “Você é tão má quanto o próprio assassino! É sádica, se diz isso.”
Equivalente ao absolutismo de Tom era o seu poder de exagero. Só conheci outra pessoa como ele, um piloto da Royal Air Force chamado Paddy que conhecia sempre alguém que tinha feito qualquer coisa mais do que nós, que conseguia comer, beber, fumar, fazer sexo o dobro de nós. Se não fosse ele, seria alguém que ele conhecia e tinha sempre uma testemunha para provar o facto. […] Assim era Tom. Mas por trás do tipo exuberante, estava o homem mal-casado e infeliz.
Mary – Bebedolas (porque é que ela permitiria que lhe chamassem isto?) - era uma mulher morena e engraçada com um ar de superioridade muito parecido com o das mulheres nas lojas de Paris cuja sobranceria tenta em vão transmitir a ideia de que foram feitas para algo melhor do que atender o cliente. A maior parte do pessoal não gostava dela e Jimmy – o lavador de pratos de quem Tom era amigo – contou-me que eles discutiam com ódio e crueldade, ao passo que Irene – uma empregada dos quartos – dizia que ela era uma cabra e que dava uma vida de cão ao Tom. O próprio Tom confessou que vivia a maior parte do tempo em casa da mãe, que vivia sozinha […] Mary vivia a maior parte do tempo sozinha. “É melhor assim,” dizia, ”evita os inevitáveis confrontos. Uma separação destas é o mesmo que uma feliz vida de casado!” Noutra ocasião afirmou: “As pessoas pensam que nós brigamos, a minha mulher e eu. Não brigamos. Não é que me importe com o que as pessoas dizem… nada me preocupa menos…” Claro que nada o preocupava mais. Era assim, o Tom. Cheio de pequenos dogmas, interesses pessoais a defender, contradições, inconsistências, um saco cheio de pequenas fraquezas humanas. No entanto era afável, o que nos fazia ignorar as suas estúpidas hipocrisias. Excepto uma.
Com frequência gritava “Justiça!” mas não defendia os nossos direitos. Porque ele tinha o hábito de fazer muitas horas extraordinárias e raramente pedia o dinheiro por isso, esperava, irrazoavelmente, que nós fizéssemos o mesmo. A cozinha era toda a vida de Tom. Nada mais prendia a sua atenção excepto, talvez, a mãe; para todos os outros, a cozinha não era toda a nossa vida. Ele podia ter feito qualquer coisa em relação ao pagamento das horas extraordinárias, mas não fez nada. Se bem que houvesse um lado positivo – ele não chateava. Nem perseguia. Só esperava dos empregados da sua cozinha o que eles conseguiam fazer ou o que era preciso fazer-se. Não havia o medo de ser repreendido por se deixar queimar os bolos, ou descascar nabos amarelos em vez de nabos roxos, ou usar as últimas peras numa salada de frutas quando elas faziam falta para a Belle-Hélène. Como resultado disto, não existindo qualquer atmosfera de medo, pouco corria mal. E quando corria, Tom mantinha-se calmo e eficiente. A cozinha funcionava sem problemas porque ele sabia o quer tinha de ser feito, por que ordem, e quanto tempo demorava cada acção. Era temperamental mas nunca entrava em pânico e só duas vezes o vi perder a cabeça, de fúria. A primeira foi quando um cliente pediu uma dose maior (ou terá sido um pedido para repetir?) e ele enfureceu-se. Tom era muito rigoroso com a ganância. A segunda vez foi quando um aprendiz fritou o peixe errado. Tom atirou com tudo para um canto da cozinha e irrompeu em palavrões. Mas não era um tirano e nunca puxava dos galões. […]
No centro deste espírito irrequieto e descontrolado estava o velho cancro: um complexo de inferioridade. Ele tinha consciência de que a inteligência podia medir-se e que o nível de inteligência por que ele tinha respeito estava fora do seu alcance. Com frequência, se debatia para tentar libertar-se e entrava em competição, odiando alguém que dissesse o que ele achava dever ter sido ele a dizer. Troçava: “Sim, sim, é isso, está certo, claro.” Na tranquilidade da reflexão penso nele com mais simpatia do que as minhas notas sugerem que eu sentia na altura. As suas explosões barulhentas e insistentes devem ter-me dado cabo dos nervos.
No entanto, apesar da galhofa, gostávamos um do outro, se bem que a violência nunca estivesse longe.
[…]
A última nota sobre Tom, envolve a sua personalidade num padrão familiar. Em simultâneo com a sua violência para com a esposa, tinha um quase patético amor pelos animais. Os Taylor tinham um pequeno terrier chamado Phoebus que passava a maior parte do tempo na nossa cozinha, juntamente com um gato preto, e Tom preocupava-se com eles da mesma maneira que as pessoas que não têm mais nada sobre que derramar a sua afeição. Interrompia a conversa mais importante para saudar o cão, sempre que ele entrava na cozinha, com o nariz no chão, a cauda a abanar num prazer Pavloviano, expectante e ansioso, indo direitinho a ele.
“Oh, cãozinho! Aqui está um bom cãozinho! Pois és! Um bom cãozinho! Que acham, ein? Oh, cãozinho, cãozinho.” A vaidade mais ardentemente sentida de Tom era que o cão vinha ter com ela antes de toda a gente. “Aquele cão gosta de mim, pois gosta.” E mergulhava nos rituais do cuidado excessivo com o animal enquanto a sua bonita e impassível mulher ficava ali de pé, com um sorriso distante, habituada a tudo aquilo e sabendo, sem dúvida, muito que nós não sabíamos.

Pp. 322-326

quarta-feira, 25 de abril de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Dezassete 1


Hotel Bell
Norwich
Norfolk
Sábado, 12 de Dez. 1953

Olá Pai Joe,
Sei que não escrevo especialmente para ti muitas vezes, mas como a mamã me disse que não estás tão bem quanto seria desejável, pensei que umas poucas linhas te iriam animar.
Não sei como, penso que gostarias do meu quarto. É uma mansarda que dá para o que deve ser a zona mais animada de Norwich, e hoje, sábado, olho para fora da minha janela e vejo multidões de pessoas e carros nas ruas. As compras de Natal! Milhares de pessoas a gastarem o que devem ser milhões de libras.
[…]
Ias gostar dele. O quarto é pequeno mas tem um formato estranho e deve ter umas centenas de anos. O próprio Bell deve ser um dos mais antigos hotéis da cidade. Norwich, como te recordarás por causa daquele passeio que fizeste há algum tempo, tem certamente uns bons mil anos. O castelo é normando. Existe, é claro, o inevitável hotel onde a Raínha Bess [Isabel I] pernoitou. Julgo que todas as cidades antigas de Inglaterra afirmam que a boa Rainha lá passou algum tempo, numa altura ou noutra.
[…]
Talvez o mau maior prazer aqui, e seria também o teu, seja andar pelas livrarias. Há muitas e consegue comprar-se os clássicos por muito pouco dinheiro.
[…] Aqui tenho muito tempo para ler. Posso ir para cama por volta das 10 da noite e ler até à meia-noite.
[…] Hoje, por exemplo, vou ver os Norwich Players […] e a sua versão dos Espectros, de Ibsen. E, para a semana, é o jantar anual do grupo de cinema que custa dez xelins. Estou prestes a considerar se vou ou não. É muito caro e com as dívidas que tenho de pagar, o meu dinheiro não dá para muito. Verei…

O gerente chamava-se Sr. Taylor, um homem paternal e distraído. Quando me entrevistou para a posição de ajudante de cozinha, a mais humilde das humildes ocupações da cozinha, a minha atitude baralhou-o. Quem seria este jovem que estava à sua frente a falar com uma voz “educada”, firme e confiante e que desejava um trabalho tão modesto?
[…]
A sra. Taylor referia-se ao marido como “Papá”, presumo que mantendo a forma como falava com as suas duas filhas. O sr. e a sra. Taylor eram conhecidos pelo pessoal do hotel como “Mamã e Papá”. Por regra, o sr. Taylor usava calças de flanela cinzentas com um blazer azul e botões dourados – um fato que, em palco, teria leitura imediata – e, de vez em quando, usava um fato de golfe castanho. O seu fato “melhor” era cinzento. De altura mediana, cabelo cinzento, nunca parecia ter a certeza do que se estava a passar, esperando que toda a gente soubesse e ele pudesse confiar em todos.
[…] Naquele ano, os Taylor terminavam o contrato e deram-nos a escolher entre 3,6 dinheiros por uma caixa de Natal, ou podíamos dar-lhes 1 penny para pagar a diferença de um maço de cigarros que custava 3,7 dinheiros! Nem houve qualquer gesto de reconhecimento por todo o tempo a mais que todos tínhamos trabalhado. As minhas notas dizem-me:

"A noite passada deram uma festa para a R [Rosemary, uma das filhas]. O chefe passou a noite toda a fazer empadas, doces e outras coisas. Calculo que as coisas tenham vindo dos abastecimentos normais, e não dos bolsos deles. Nada de gratificação para o chefe, como se o trabalho dele fosse um dado adquirido… pouca classe, gente pequena. Chamavam-nos pelo primeiro nome, até eram amigáveis no trato. Mas é o tom condescendente… não tenho a mínima dúvida de que, mais tarde ou mais cedo. Acabarei por discutir com a madame."

No entanto, a mesquinhez não era opressiva. O meu quarto na mansarda era o meu castelo, inviolado. Respeitavam a nossa privacidade.

Tom, o Chefe

A grande cozinha estava situada dois metros abaixo do chão. Os fornecedores vinham da rua e desciam as escadas para fazer as suas entregas. O Chefe era Tom Bullock, e a mulher dele, Mary, de alcunha “Bebedolas”, tratava das contas. Brigavam um com o outro e ele passava a maior parte do tempo em casa da mãe – da casa dele, pouco tempo depois.
Tom rapidamente percebeu que eu tinha potencial para mais do que apenas ser ajudante de cozinha e ensinou-me os rudimentos da culinária – manteiga clarificada para molhos, massa para empadas e tartes doces e salgadas, tarefas fáceis. As suas capacidades não atingiam a haute cuisine se bem que, de vez em quando, em casos especiais, ele alcançasse alturas acima do normal, segundo a bitola do caixeiro-viajante: poulet au riz [arroz de frango], por exemplo, ou um trifle [1] mais do que básico. As ementas normas incluíam rosbife e Yorkshire pudding [2], costeletas grelhadas, perna de borrego assada, lombo de porco assado, tartes de maçã, pudins de pão, ameixas e custarda. E assim, os meus dias na cozinha eram variados – não só lavava as bancadas e limpava o chão de ladrilho, não só descascava ervilhas e batatas, como também batia as claras para fazer merengue, amassava a massa para as empadas de vaca e rins, fazia molhos com caldo, mexia e passava a custarda até ficar macia. Mais tarde, quando Edie, a cozinheira dos pequenos-almoços foi de férias, confiaram-me a tarefa de os fazer, na copa do andar superior, que estava de frente para as portas da sala de jantar.
E tinha ajuda. Durante os cerca de catorze meses que trabalhei no Bell, trabalharam ao meu lado, por várias vezes, duas personalidades cheias de vida: Gordon e Harry. Já não me lembro qual deles foi o primeiro, o Gordon, acho; eram segundos-ajudantes, sendo eu primeiro, se bem que nunca essa divisão fosse invocada; a longevidade ditava a hierarquia. Harry era um malandro encantador em quem não se podia confiar para nada. Os seus salários desapareciam em vinte e quatro horas. Durante o resto da semana andava no cravanço. Gordon, de cabelo escuro, baixinho, cheio de vivacidade, em algumas manhãs muito trémulo, dobrado sobre o lava-louças enquanto descascava as batatas, muitas vezes ainda com maquilhagem esborratada na cara, era gay, e ganhava um dinheiro extra como travesti, cantando libidinosamente num bar perto da estação de Norwich chamado Blue Room. Tinha um talento modesto mas a sua tendência para “trabalho duro” mantinha-lhe os pés na terra, numa vida confusa; e se bem que a sua dureza fosse do tipo de esquina, era apenas mais uma vítima da vida, ansiando por amor e derramando gentileza indiscriminada sobre todos aqueles que, depois, abusavam dele. De Gordon e Harry falarei mais tarde.

[1] Tipo de sobremesa, muito popular em Inglaterra, à base de palitos la Reine ou bolo seco, compotas várias, licor e molho de custarda.
[2] Uma espécie de morcela salgada.
Pp. 319 - 322

Do Realismo ao Naturalismo...

As características gerais do Realismo são: a análise e síntese da realidade com objectividade, em oposição à subjectividade romântica; exactidão, veracidade e abundância de pormenores, com o retrato fidelíssimo da natureza; total indiferença perante o "Eu" subjectivo e pensante perante a natureza (o "Eu" romântico); neutralidade de coração perante o bem e o mal, o feio e o bonito, vício e virtude; análise corajosa de vícios e podridão da sociedade; relacionamento lógico entre as causas desse comportamento (biológicas ou sociais, e a natureza interior e exterior da personagem); admissão de temas cosmopolitas na literatura; uso de expressões simples e sem convencionalismos (por oposição ao tom declamatório romântico).
O Naturalismo difere do Realismo, mas não é independente dele. Ambos crêem que a arte é a representação mimética e objectiva da realidade exterior. Foi a partir desta tendência geral para o Realismo mimético que o Naturalismo surgiu, sendo por isso muitas vezes encarado como uma intensificação do Realismo. As características principais são: tentativa de aplicar à literatura as descobertas e métodos da ciência do séc. XIX (filosofia, sociologia, fisiologia, psicopatologia, etc), tentando explicar as emoções através da sua manifestação física (apresenta, assim, mais razões científicas do que o simples descrever dos factos do Realismo); resultou muitas vezes na escolha de assuntos mais chocantes (alcoolismo, jogo, adultério, opressão social, doenças, as suas causas e consequências), vocabulário mais terra-a-terra, motes mais cativantes ou detalhes mais fotográficos.
O Naturalismo acabou por se tornar uma doutrina (instituiu que o indivíduo era primária e fundamentalmente modelado pela hereditariedade, meio e educação - pela "natureza"), com uma certa visão muito específica (Eça de Queirós chamou-lhe a "forma científica que a arte assume") do Homem e do seu comportamento, tornando-se mais concreto mas também mais limitado que o Realismo, embora que, como os olhos do observador/escritor não são lentes inanimadas, a reprodução da realidade em cada uma das obras Naturalistas, pode reconhecer-se como sendo individual, e os Naturalistas acabam por afastar-se da própria teoria.

http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/j_g_ferreira/realismo.html, 25/04/2007

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Atenção! Aviso à navegação!

Depois de muitos de vocês não terem cumprido o prazo desta semana, a Bruxa, bruxa que é, quer ver as correcções da biografia, o mais rapidamente possível. Por isso, quem ainda não me mandou a biografia corrigida e acrescentada, se faz favor, tem essa gentileza até terça-feira, dia 24 de Abril, véspera de feriado...
A Bruxa quer as duas partes da bibografia: a que fizeram a partir da página do senhor e a que fizeram a partir d'A Despensa... Tudo corrigido, arrumado e com as alterações feitas numa cor diferente do preto.

terça-feira, 17 de abril de 2007

E pronto!

E pronto! Ao fim de algum tempo e muitos textos (cinquenta e um, para ser mais precisa) e imagens mais tarde, a Bruxa dá por terminada a secção de Tapas e Petiscos aqui da Despensa, agradecendo o valioso contributo do colega Desgraça em alguns campos mais específicos do saber.
A menos que algum aprendiz tenha alguma dúvida ou não conheça qualquer outra coisa que venha referida n' A Cozinha, e por isso seja necessário acrescentar mais qualquer coisa, esta parte do trabalho está concluída e pronta para ser utilizada em Dramaturgia, História do Teatro, Monografia e afins...
Bom trabalho!

E para acabar...



Página 86 - "Os outros cozinheiros correm a tentar detê-lo. Ele liberta-se e deita a mão a um grande cutelo."Um cutelo é um tipo de faca utilizada por talhantes e açougueiros no desmancho das carcaças e corte de peças mais pesadas e ossos. Muito afiado e bastante mais pesado do que as outras facas, pode transformar-se numa arma temível.


Pode ainda ter duas pegas e ser utilizado para picar carne ou, em versão pequena, ervas e legumes.




E já há designers a trabalhar no assunto...

Fungos canídeos...


Página 84 - "MAX – Oh, eu sei disso, podes crer. Há só uma droga que é eficaz pela boca. [Em segredo] E sabes o que é? Dente-de-cão! Já ouviste falar? É a única coisa a fazer. E é rara."


Dente-de-cão é o nome popular do fundo conhecido por cravagem do centeio. O esporão do centeio (Claviceps purpurea) é um fungo parasita que ataca o centeio, e do qual se extraem vários alcalóides e substâncias de uso medicinal. Conhecido desde a Idade Média, foi causador de várias doenças, uma vez que as pessoas comiam pão de centeio infectado com o fungo. No entanto, cedo se percebeu que dele se podiam extrair substâncias com valor medicinal. Utilizado para diminuir dores, percebeu-se que era um vaso-constritor, o que o tornava útil no tratamento de hemorragias. Da mesma forma se descobriu que essa sua característica o tornava um abortivo de fácil obtenção, vindo a ser bastante popular nos casos de aborto clandestino.
Ainda hoje, a substância é utilizada e o Infarmed regista-a entre os produtos naturais: “Os ocitócicos, que compreendem certas prostaglandinas, derivados da cravagem do centeio (ergometrina e metilergometrina) e uma hormona do lobo posterior da hipófise (oxitocina), são utilizados para desencadear o aborto ou induzir/acelerar o trabalho de parto e minimizar a perda hemática [de sangue] devida à desinserção placentária [descolamento da placenta no final da expulsão].”

Comprimidos e abortos...

Página 80 - [Enquanto PETER e MONIQUE continuam a falar afectuosamente, ouve-se um grito inesperado, vindo do fundo da cozinha. WINNIE está dobrada em dois, cheia de dores, e desmaiou. Várias pessoas correm para ela – acontece tudo muito depressa, mal se nota. Os rapazes que estão à mesa limitam-se a olhar em volta a observar e não se mexem. PETER e MONIQUE nem sequer ouvem. Só se ouvem algumas vozes indistintas.]

Entre as primeiras pessoas a quem servia pequenos-almoços estavam as empregadas dos quartos. No terceiro dia, uma quarta-feira, a Winnie e a Dolly estavam à espera dos seus pequenos-almoços. - Não me dês bacon, só um ovo, - pediu a Winnie. - Só estrelado. - Era uma mulher grande, grosseira, amigável, tagarela, mal vestida com o cabelo de um cinzento sujo, sempre despenteado, sem os dentes da frente. Com quarenta e cinco anos, era uma mulher gasta, maltratada, nada atraente mas transpirando uma vaga e desagradável sensualidade. Eu tinha acabado de servir três pequenos-almoços de bacon e ovos ao Bob antes de preparar o pequeno-almoço para elas. Quando me virei para lhes entregar a comida, tinham desaparecido. Ali em cima do balcão estavam as bandejas delas com as torradas e o bule do chá, à espera do bacon e dos ovos. Pensando que podiam ter-se esquecido de qualquer coisa, guardei a comida para a manter quente e continuei a servir ao pessoal do pequeno-almoço os pedidos que traziam da sala.
Passaram vinte minutos e a Winnie e a Dolly ainda não tinham aparecido. Por causa do trabalho, não parei para pensar no que lhes teria acontecido, não me pareceu importante. Os empregados voavam para dentro e fora da sala, gritando-me os seus pedidos. Fiquei sem bacon e corri escada abaixo, para ir buscar mais. Nas escadas encontrei o sr. Taylor, que passou por mim. Continuou, passando pelo aquecedor de pratos e saindo pela outra porta, por onde Dolly e Winnie tinham saído. Assim que entrou, ouvi-o parar.
- Olá! Quem é que se tentou matar? O que é este sangue todo? – Não prestei atenção e continuei a descer as escadas, para ir buscar o bacon.
A azáfama da manhã tinha acabado, eu estava a limpar as ruínas gordurosas da primeira refeição do dia, a Winnie e a Dolly não tinham regressado. Quando perguntei à Irene onde elas estavam, respondeu-me que a Dolly tinha levado a Winnie a casa. Perguntei porquê.
- Depois digo-te, - respondeu, de uma maneira que me fez ficar convencido de que a Winnie estava a ter um mau período menstrual. O trabalho continuou.
Foi Dolly quem trouxe as notícias: a Winnie tinha sido levada de urgência para o hospital para ser operada. Tinha tentado fazer um aborto e tinha sido terrivelmente bem-sucedida. O bebé nasceu no meio de uma confusão de sangue, parte do qual estava agora junto da porta, próximo do meu balcão de pequenos-almoços. Mais tarde, nesse dia, Irene chamou-me à parte.
- Estou assustada, - disse. – Por causa dos comprimidos. – A Jacky andava a dar-lhos. E a Ann, que estava grávida de dois meses e meio.
- Ei, Jacky, Annie e Winnie. De quanto tempo é que ela estava?
- Quatro meses.
- Deve estar louca! Não sabe as coisas da vida?
- Devia saber. Tem sete filhos e está casada há cerca de vinte anos.
- De quem era? – perguntei.
- De um soldado amigo dela. Mas e os comprimidos? A Jacky pediu-me para os guardar. E se mos encontram? – Ofereci-me para os esconder mas ela decidiu devolvê-los à Jacky.
As notícias espalharam-se depressa e o Chefe Tom foi lesto em esclarecer o pessoal da cozinha porque, claro, ele era uma autoridade em tudo. As suas palavras são as que usei em A Cozinha após ter acontecido um episódio semelhante.
“Sabia que isto ia acontecer. Não se pode voltar atrás. O que será que leva as pessoas a pensar que se tomarem um comprimido pela boca isso vai afectar o útero? Impossível! Só há uma maneira, da maneira como entrou. O que acontece? Nada! Nada consegue! Tudo o que acontece é que o estômago fica irritado, comprimido, vêm? E isso faz força no útero, pressiona-o. Oh, eu já sabia isto, pois sabia. Só há uma droga que é eficaz pela boca. E sabem o que é? Dente-de-cão. Já ouviram falar? É a única coisa a fazer. E é rara. Oh, sim, estudei isto no exército quando não tinha mais nada para fazer. Muito interessante, esta psicologia. Complicada. Soube que a Winnie estava prenha assim que entrou…

Claro que sabia! Barulhento, vociferante, exaltado, gesticulando exuberantemente, e dogmático sem aceitar contradição. Dei o discurso a Max, o talhante em A Cozinha. Intolerante!

Arnold Wesker conta este episódio a propósito do seu emprego no hotel Bell em Norwich, durante catorze meses, entre 1953 e 1954.

Carros

p. 82 - "GASTON – Já viste o novo Citroën francês? Parece um sapo mecânico, aquilo.
HANS – E o Volkswagen? Não bom carro?
KEVIN – Ora aí está um bom carrinho por pouco dinheiro. "

O «novo Citroën francês» é o Citroën DS, mais conhecido entre nós por “Boca-de-Sapo”. O sucesso deste carro foi tremendo e, durante os seus vinte anos de produção (1955-1975), foram vendidas cerca de um milhão e meio de unidades. O sucesso do DS deveu-se em grande parte ao seu design futurístico e aerodinâmico e à sua tecnologia inovadora (suspensão hidropneumática com corrector de altura, ajustável pelo condutor através de uma pequena alavanca no interior, direcção e embraiagem assistida, duplo circuito de travagem, poder de travagem ajustável à carga e travões de disco no eixo dianteiro).

O Volkswagen é, obviamente, o famoso “Carocha”, um carro que tinha tanto de eficiente como de barato. Apesar do seu real início se dar em 1933 (e os seus impulsionadores Adolf Hitler e Ferdinand Porsche), foi a partir dos nos anos 50 que este Wolkswagen (carro do povo) atingiu o seu boom em termos de produção (cerca de 1 milhão de unidades só em 1954).

Há raposas no deserto...

Página 74 – "VAGABUNDO [para KEVIN] – Ganhei-a no deserto, contra o Rommel."

Erwin Rommel (1891-1949) foi um soldado alemão, nascido em Heidenheim. Educado em Tübingen, distinguiu-se durante a Primeira Guerra Mundial. Foi instrutor na Academia Militar de Dresden e, desde cedo, simpatizante da causa nazi. Comandou a guarda do quartel-general de Hitler durante as ocupações da Áustria, e Checoslováquia e ao longo de toda a campanha da Polónia. Ao comando de uma divisão panzer durante a invasão de França de 1940, mostrou tanta energia e iniciativa que foi promovido a comandante do Afrika Korps, onde as suas espectaculares vitórias contra o delapidado 8º Exército (inglês) lhe valeram a alcunha de “Raposa do Deserto” e a admiração dos seus inimigos. Capturou Tobruk (1942) e forçou a retirada dos ingleses para Al Alamein, mas em Novembro de 1942 foi aí derrotado pelo general Montgomery e teve de fugir para Tunes.

Em Março de 1943, já doente, teve de ser retirado de África, por insistência de Mussolini. Mais tarde, Hitler nomeou-o comandante da Defesa do Canal da Mancha em França. Regressou a casa, ferido, em 1944 e a suspeita de participação numa conspiração contra Hitler pô-lo perante o dilema de escolher entre o esquadrão de fuzilamento ou o suicídio. Tendo escolhido a segunda, envenenou-se, permitindo assim que a sua família continuasse a dispor dos seus bens que não foram confiscados pelo Estado. Estratega brilhante, ainda hoje as suas tácticas de guerra no deserto são estudadas.

Reforma e papelada...

Página 74 – "VAGABUNDO [para KEVIN] – Não costumo fazer isto. Não posso fazer nada até encontrarem a minha caderneta."

Em Inglaterra, até há muito poucos anos, os pensionistas tinham um “pension book” que os identificava como pensionistas e lhes permitia levantar as respectivas pensões e ter acesso aos benefícios da reforma. Também era nesse “livro” que se faziam os registos dos benefícios recebidos. O que temos mais parecido em Portugal é a caderneta da Caixa Geral de Depósitos. Em 2003, devido a razões de segurança e eficácia, o Chancellor (o equivalente inglês ao nosso Minstro das Finanças) começou a mudar o tipo de documentação relativo à identificação de pensionistas.
Hoje em dia as cadernetas já quase não existem, tendo sido substituídas por cartões magnéticos.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

A mania das grandezas...

Página 74 – “KEVIN – Ali o Napoleão.”

Napoleão Bonaparte, nasceu no dia 15 de Agosto de 1769, em Ajaccio, na Córsega. Em 1785 vem para Paris, onde ingressa na escola militar. Em 9, 10 e 11 de Novembro 1799 participa num golpe militar em França, conhecido por 18 do Brumário, e em 13 de Dezembro é nomeado cônsul, juntamente com Cambacérès e Lebrun. As suas vitórias militares e crescente influência levam a que, em 18 de Maio de 1804, por consulta do Senado, seja proclamado imperador dos franceses com o título de Napoleão I.
A ambição de Napoleão era ser senhor de toda a Europa, contrapor o poder de França ao de Inglaterra e fazer frente à América. Envolvido em campanhas militares desde os anos ’90, estendeu o poderio de França a todo o continente europeu, da Itália à Rússia, à Suécia e Polónia. Excelente general, senhor de uma capacidade estratégica notável, reuniu um enorme exército que ao longo de bastantes anos batalhou um pouco por toda a Europa, na maior parte das vezes com sucesso.
Em 1805, tem um primeiro revés importante: a derrota na batalha de Trafalgar. Os ingleses ganham mas Nelson é morto por um tiro de canhão, que o apanhou na ponte do seu navio Victory.


Os exércitos napoleónicos estiveram em Portugal em 1807, comandados por Jounot, que foi derrotado por Wellesley (futuro duque de Wellington) no Vimeiro e capitulou em Sintra. Em 1809, o exército napoleónico, agora comandado por Soult, regressa, e em 1810 é a vez de Massena tentar a sua sorte no nosso país. Devido a circunstâncias como a distância e o auxílio fundamental dos ingleses, Portugal foi um dos poucos países que nunca capitulou perante Napoleão.
Em Setembro de 1812, a sorte começa a mudar. Depois de ter conquistado uma Moscovo em chamas, incendiada pelo czar Alexandre que prefere uma política de “terra queimada” a aceitar as tréguas propostas por Napoleão, a chegada do rigoroso Inverno moscovita, o "general Inverno" surpreende-o. Neva pela primeira vez no dia 13 de Outubro e o exército napoleónico cansado, esfomeado e cheio de frio, é obrigado a bater em retirada. No século XX, Hitler, admirador confesso de Napoleão, cometeu o mesmo erro e, tal como a retirada da Rússia marca o início do fim do poderio napoleónico, também a derrota na frente russa e a retirada de Moscovo marcam o princípio do fim de Hitler e consequente vitória dos Aliados.
No dia 29 de Dezembro de 1813, o Corpo Legislativo francês aprova um texto em que se fala da “ambiciosa actividade de Napoleão” e em 28 de Abril de 1814, vencido, embarca para a ilha de Elba.
Em 1815 regressa para tentar reconquistar o trono mas, depois da derrota na batalha de Waterloo, no dia 18 de Junho desse mesmo ano, é enviado para Santa Helena, onde acaba por morrer em 5 de Maio de 1821.

NOTA: Se querem saber mais alguma coisa sobre esta última fase da vida de Napoleão, a Bruxa recomenda A Última Ilha do Imperador, de Julia Blackburn, Lisboa, Temas & Debates, 200?.