terça-feira, 27 de março de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Quatro

O meio

Os meus pais conheceram-se no emprego: ambos trabalhavam à máquina na área das confecções, ambos cantavam no coro de uma organização socialista sionista chamada Poale Zion e casaram-se no dia 27 de Novembro de 1923. No dia 27 de Agosto, nove meses depois, nasceu a minha irmã Della.
O East End fervilhava de actividade. As vidas colidiam nas fábricas clandestinas, grupos políticos, associações culturais de trabalhadores, clubes de jovens, esquinas das ruas. Os judeus dominavam a zona, e a geração antes da minha vivia vociferante, argumentativa, emotiva, com uma espécie de desespero. O medo das perseguições estava latente. Não havia camponeses analfabetos a embebedarem-se e a armar confusão mas em todas as esquinas existia um bar – nunca se sabia que embriagadas fúrias de frustração iriam sair deles. Os judeus têm uma saudável crença de que a vida lhes foi concedida para viverem aqui e agora nesta terra. Está bem enraizado na percepção judaica um profundo cepticismo quanto à outra vida. Sabem que as promessas do paraíso encorajam sacerdotes sem escrúpulos a intrujar os crédulos em seu proveito – os judeus não se deixam enganar! Para além disto, possuíam grande vontade de viver e o desejo de experimentarem na totalidade tudo o que a bondade de Deus lhes tinha concedido. A Inglaterra era livre como mais nenhum sítio, todas as energias eram libertadas – as boas e as más: o explorador e o explorado, o rico e o pobre, o letrado e os de vistas estreitas.
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As minhas recordações mais antigas do pequeno apartamento alugado nos Rothschild’s Buildings são da Tia Sara a contar histórias do sindicato, muitas vezes sobre o sr. Fine, o seu superior no sindicato, com quem discutia permanentemente: “Então o Fine disse isto... e eu disse ao Fine...” Uma figura pouco nítida que acabei por vir a conhecer quando ele se reformou e eu fui convidado de honra no seu jantar de despedida, mas cujo real papel no quadro geral só vim a compreender quando li East End Jewish Radicals, 1875-1914 do Professor William Fishman.
J.L. Fine foi o dirigente sindical que, em 1912, convenceu os trabalhadores das confecções a pararem o tempo suficiente para ganhar uma greve que lhes permitiu fundarem um sindicato unido de trabalhadores de confecções. Um aspecto ainda mais extraordinário dessa greve, foi o papel desempenhado por um tal Rudolph Rocker, um anarquista alemão, gentio, que veio para Londres e aprendeu iídiche sozinho para poder ajudar a organizar os trabalhadores judeus imigrantes que encontrou a viver em condições de grande dureza e depressão. O protegido de Rocker era J.L. Fine. Quando Fine estava prestes a conceder a vitória aos mestres alfaiates, Rocker insistiu para que aguentasse mais um dia. Ele assim o fez. O Sindicato dos Trabalhadores de Alfaiataria e Vestuário nasceu e, muitos anos mais tarde, a Tia Sara tornou-se uma das suas organizadoras mais coloridas, respeitadas e temidas por alguns.
Rocker não foi a única personalidade carismática do East End. O clima político e cultural em que os meus pais se viram, que os alimentou e, por intermédio deles, me alimentou a mim mais tarde, era formado por uma série de personalidades.
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“Como acontece com muitas mulheres, ela casou com o homem errado” – de A Visita

O meu pai e a minha mãe não foram feitos um para o outro. Há quem diga que não somos feitos para ninguém. Encontramo-nos e depois dos dias tranquilos do amor e rosas, muito simplesmente, habituamo-nos uns aos outros. Ou não. Os meus pais não se habituaram.
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As águas traiçoeiras do amor e casamento ocuparam muito da minha escrita: a triste e amarga relação dos meus pais ficou registada em Canja de Galinha com Cevada; no desenlace explosivo de A Cozinha, quando a amante casada da personagem Peter, finalmente, recusa o seu convite para fugirem juntos; Dobson, o amigo cínico em Falo de Jerusalém, conta a saga de dois casamentos desastrosos; As Quatro Estações – dedicada na sua totalidade à recriação de um amor apaixonado que corre mal.
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Será que tudo isto radica no facto de ter crescido com pais que discutiam? Bem, para ser judeu, sim e não. O que é uma forma de dizer talvez. Ou... vida nenhuma é tão simples. Della diz-me que eu era uma criança turbulenta e obstinada. Atribui isso às discussões deles. “Eram inconsequentes, baralhavam-te.” Ela acredita que existe um padrão na minha vida que repete as incongruências deles. Eu não aceito isto. A contradição e o paradoxo assaltam-me tal como assaltam a maior parte das pessoas mas eu assumo a responsabilidade da pessoa que sou e julgo que as discussões dos meus pais contribuíram apenas para uma parte desse padrão. No fim de contas, eles tinham sentido de humor. Não herdei isso? Ambos eram animados... e também herdei essa característica.
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Uma das minhas teorias quanto à arte é que ela lida com aquilo a que chamo “verdades secundárias” por oposição a verdades “primárias” ou “absolutas”. Não há uma verdade absoluta no que se refere à natureza do amor, das mulheres, da felicidade, do que quer que seja. Os poetas escrevem canções diferentes sobre cada uma, e cada uma está certa para alguns de nós, para alguns de vez em quando e para alguns só em determinadas alturas.
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Porque casaram então, Leah e Joe? A opinião das minhas tias Ann e Sara era que ela tinha pensado que seria capaz de o mudar. Afirmam tê-la avisado do seu comportamento indolente e irresponsável. Ela ignorara os seus avisos: que ficasse com as consequências! Correu mal desde o princípio. Ele deixou-a ao fim de poucos meses de casamento.

[O pai de Wesker esteve preso, por queixa da mãe, por não pagar a pensão devida aos filhos. Ela teve de recorrer à Assistência e por várias vezes empenhou a mobília para conseguir dinheiro para pagar as contas. Indisciplinado e irresponsável, Joe nunca conseguiu manter uma vida estável.]
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O sexo nas minhas peças

Em 1978, uma actriz comentou que não havia nem sexo nem violência nas minhas peças. Era verdade - com a excepção do final violento de A Cozinha, o espancamento de uma velhota em Os Velhos e as referências ao ”amor durante a tarde” em Raizes. Tinha começado o meu “período pornográfico”.
Caracterizo a pornografia como “erotismo sem arte”. Os filmes pornográficos excitam mas acabam por ofender devido ao aspecto miserável, falta de subtileza, representação rígida e pobreza de enredo, personagens e texto. Talvez o mais ofensivo seja o tema único: filmar o coito aborrecido e repetitivo. A questão que ponderei foi a seguinte: Se estimular as pessoas para que pensem, sintam, riam, chorem e, até mesmo, ajam nas suas vidas é uma função válida da arte, poderemos negar-nos à estimulação de um dos mais vitais e irresistível impulsos – o impulso sexual? Ou, se encaramos a arte como um registo, um testemunho, poderemos evitar a paixão, a dor, a beleza, a comicidade, a variedade mutável e perversa do desejo e da sua satisfação no registo literário do comportamento humano? Em duas obras tentai tratar o tema do sexo tal como tratei a desilusão política, a descoberta do eu, o amor, a velhice e o confronto com a morte.
[One More Ride on the Merry-Go-Round e Lady Othello – ambas foram fracassos.]
Talvez, tal como acontece com a emoção nas minhas peças, o sexo fosse demasiado cru. Ou demasiado irreverente. Os ingleses entusiasmam-se com humor de casa-de-banho, como o de Joe Orton, ou o asinino dos filmes Carry On, ou com troça básica. A combinação de humor com intelecto parece ter morrido com Shaw. Tom Stoppard é a excepção. Mas este rapaz, com a língua na bochecha, não consegue agradar. Havia uma imagem mal entendida desde o início, que congelou. Espera um bocadinho de incitamento caloroso para derreter.
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A Guerra

Quando rebentou a guerra, no dia 3 de Setembro de 1939, a maior parte das crianças foi evacuada juntamente com as da sua escola. Eu não. A minha irmã estava demasiado ansiosa para me deixar separar-me dela. Arranjou maneira de eu ser despachado juntamente com A Escola de Meninas da Fundação de Spitalfields Central e enviado para Ely, nos Fens. A minha mãe conta uma história de como, quando estavam a reunir umas crianças na estação da Rua Liverpool, com os casacos apertados, barretes, máscaras de gás em caixas de cartão ao ombro, malas enormes nas mãos, excitado com tudo aquilo, um professor disse aos aflitos pais: “Bom, digam-lhes adeus. Podem nunca mais os ver!”
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Porque será que não sinto o menor desejo de pormenorizar a guerra, o tempo entre os meus sete e treze anos? Só me ocorre uma sucessão de imagens e de sons: o som assustador da sirene dos ataques aéreos, o seu grito lamentoso, o seu aviso sobe-e-desce de que os bombardeiros alemães vinham aí para nos matar. Era um som aterrorizador que crescia num rugido de uma nota grave e crescia até se transformar numa ameaça esganiçada que aumentava e diminuía mandando-nos andar depressa senão... Durante muitos anos o meu coração saltava a cada som que se parecesse com aquele. O final de cada ataque era assinalado por um zumbido forte, numa nota só: Está livrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrre! Della recordou-me que, nos primeiros dias da guerra, nos mandaram para Adelaide, mesmo junto a Ely.
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Respondi-lhe que me lembrava de ter olhado pela janela e visto as estrelas pela primeira vez e aranhas; que aprendi a andar de bicicleta em Ely e que os Carver me batiam nas mãos se eu não baixasse a faca e o garfo depois de levar a comida à boca.
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Pensara-se que Londres, em especial o East End com as suas docas, portos e caminhos-de-ferro seria bombardeada de imediato. Colocaram-se baterias anti-aéreas em espaços abertos [...] Balões de intersecção vogavam no ar, na esperança de deter os aviões inimigos quando as asas se enredassem nos seus cabos. Pendurámos e prendemos cortinas pretas para esconder a luz. Vigilantes dos ataques aéreos – o meu pai era um deles – com capacetes de aço e longos e deselegantes casacos compridos azuis oficiais, andavam pelas ruas gritando “apaguem a luz!” e todos corríamos para verificar as nossas janelas. Dedos de luz vasculhavam o céu devagar, ondulando, fazendo círculos, avisando o inimigo para se manter afastado. Ele obedeceu. Durante um ano. Razão pela qual a maior parte dos evacuados regressou a casa e eu pude testemunhar o primeiro bombardeamento, no dia 5 de Setembro de 1940, quando a Luftwaffe alemã enviou sessenta e oito bombardeiros, logo seguidos, no dia seguinte, por mais duzentos. A noite seguinte troou com os roncos dos motores de trezentos e vinte bombardeiros e seiscentos caças. Foi assim durante cinquenta e sete noites seguidas. O fogo grassava, casas, edifícios e monumentos foram estilhaçados, impotentes carros de bombeiros gritavam ao longo das ruas, numa luta insana. Doze mil pessoas foram mortas, vastas áreas da cidade arrasadas. Vidas, lares e história perdidas em nome da causa ariana.
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(Pp.49-88)

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