terça-feira, 27 de março de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Sete

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Um quarto só meu

Poderá ter tido mais do que 3,60m por 2,40m? Um quarto que era uma caixa. Normal. A janela deitava para o pátio de recreio de Weald Square onde as crianças brincavam e se pendurava a roupa. Foi meu logo desde o início e senti-me um privilegiado.

[A família de Wesker viveu sempre em casas camarárias, pequenas e sem condições. O dramaturgo transcreve algumas cartas da mãe a queixar-se e a pedir que a mudassem de casa.]

Com um quarto só para mim veio o hábito de armazenar e ordenar. Arrumei os meus poemas, pus folhas de papel e papel químico nas gavetas, alinhei os meus livros por ordem alfabética em prateleiras e no parapeito da janela. Armazenados e pendurados. Um quarto só meu encorajou a minha mania de pendurar coisas – um instinto animal para reclamar um espaço. Os actores fazem isto aos camarins. Penduram os cartões da estreia; a mesa fica coberta com tralha vinda de casa... uma almofada preferida, um lenço que enfeita um espelho de estimação, um cobertor velho para umas sestas. O que armazenai nos meus sessenta e oito anos de vida vive em caixas, numeradas de um a sessenta e oito em folhas de papel de computador, nos sótãos de Ashley Road e Blaendigeddi. Em termos ideais, gostaria de construir uma sala de armazenamento separada que contivesse tudo: manuscritos originais, diários que chegariam para cinquenta romances escritos à mão em cadernos, teses académicas, arquivos do Quarenta e Dois, declarações de direitos de autor, provas de livros, exemplares da Time Out desde o primeiro número, cartas dos agentes, cartas dos tradutores, cartas de instituições a convidarem-me para fazer palestras e doar dinheiro, correspondência de toda a gente. E livros de cheques. Tudo está armazenado, incluindo o meu primeiro livro de cheques, que começa em Junho de 1958.
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E tudo porque, com a idade de dez anos, me deram um quarto só para mim que me incitou a manter a ordem. Que teria acontecido se o não tivesse? Que personalidade teria? Esta pretensão que tenho de ser um espírito livre (sim, sim, eu sei, ninguém é realmente livre), esta confiança, será que começa num quarto que é só nosso? Eu só sei que rejubilei com a nova liberdade proporcionada por este apartamento do LCC [London City Council – Câmara de Londres] na Upper Clapton Road, um quarto que arrumei, arranjei e rearranjei vezes sem conta.
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Vizinhos

Os vizinhos que a minha imaginação fixou e que se tornaram a imagem da classe trabalhadora inglesa, destruindo, de forma quase irracional, a minha percepção, foram os Gammer, da porta ao lado.
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A humanidade está dividida de muitas formas: ricos e pobres, doentes e saudáveis, sensatos e tolos, bons e maus, todos os conhecemos; mas talvez uma das divisões mais tristes seja entre os que dão e os interesseiros. A minha mãe fazia parte dos que dão – acho que todos os Perlmutter são assim – e entre os sensatos e os tolos, provavelmente estava nos tolos. Os Gammer nem davam nem eram tolos. Apesar de a nossa família ter tomado conta da Lil e do pequeno Michael durante os últimos anos da guerra, ela nunca retribuiu a hospitalidade. Lembro-me de empréstimos – os vizinhos costumavam pedir emprestado quando as rações acabavam – e lembro-me de que podíamos ir ao apartamento dela para pequenos períodos de conversa, mas que não havia uma reciprocidade genuína e calorosa. Quando o marido marinheiro regressou e retomou a vida civil como motorista de autocarros, o casal tornou-se mais frio e até libertou ocasionais odores de anti-semistismo, do género nunca assumido abertamente, apenas insinuado de formas que acabámos por reconhecer: “Vocês, a vossa gente mantém-se unida, estão sempre à parte... não deviam ficar admirados se...” O que me traz à história do David Hare.

A história de David Hare – um aparte

Hare é um dos mais importantes dramaturgos da geração a seguir à minha, ou será da geração a seguir a essa ainda? Também ele escreveu uma trilogia de peças: A Trilogia de David Hare. São muito apreciadas. Também escreveu e dirigiu os seus próprios filmes. O primeiro de todos – Weatherby – tem uma cena curiosa. Vanessa Redgrave está à janela, a olhar para o céu – penso que é uma janela e que ela está a olhar para o céu – com características que encaixam vagamente num ar de reflexão. Ela olha para reflectir em algo da mais profunda importância. Esperamos, sentindo que vai ser algo intrépido e corajoso. Do resultado da sua meditação sai algo deste género: “porque será que,” pergunta em voz alta não sei bem a quem, “quando um judeu conta uma anedota de judeus, isso se considera humor judaico, mas quando outra pessoa o faz dizem que é anti-semitismo?” Para a maior parte das pessoas razoáveis isto pareceria não só ser uma pergunta razoável, mas também uma pergunta cuja verdade salta pelos olhos dentro, não necessitando de resposta. Com toda a certeza que o senhor Hare e Miss Redgrave a consideram incontroversa, uma vez que as deixam palavras flutuar para fora da janela, deslizar suavemente como verdades que são até ao inconsciente dos gentios que estão no público que não podem deixar de, em silêncio, concordar com a cabeça. Não há qualquer outra personagem à vista que desafie este pensamento. Deve ser profundamente satisfatório para muita gente; haverá vizinhos que se viram uns para os outros, sorrindo os seus sorrisos simpáticos: “E não sabemos nós que é assim?” e “Não pensámos já isto muitas vezes?” e “Até que enfim que alguém disse isto em voz alta! Ah...”
Também eu sorri na altura, e o meu sorriso, tal como outros no público, foi um sorriso de reconhecimento. Se bem que eu tenha reconhecido outras coisas. Perdoe-me, senhor Hare, mas roubei as suas palavras. Estão na minha peça Quando Deus Quis um Filho. Essa peça, sobre a eternidade do anti-semitismo, constrói-se num casamento desfeito entre um judeu e uma gentia e o efeito que isso tem na única filha do casal, que está a ter dificuldades em afirmar-se como stand-up comedian porque não consegue decidir como quer que o seu humor seja e este parece acabar sempre por assumir um tom judaico, ácido e bastante intelectual. A mãe dela tem dificuldade em pronunciar a palavra “judeu”. Os judeus confundem-na. Foi por isso que se separou do seu marido judeu que passava o tempo a argumentar e a falar e tinha imensas ideias incompreensíveis sobre a linguagem. O marido regressa inesperadamente... tentando, de forma absurda, convencer a mulher de quem está separado a investir num dos seus projectos linguísticos de procura da verdade. O humor torna-se um tópico de conversa. A mulher proporciona a meditação Hare-ística:

"MARTHA – E porque é que, pergunto-me, quando um judeu conta uma anedota de judeus dizem que é humor judaico, e quando outra pessoa o faz dizem que é anti-semitismo?
JOSHUA – Porque quando um judeu conta uma anedota de judeus é humor judaico mas quando outra pessoa o faz é anti-semitismo."

De volta aos vizinhos

No entanto, no princípio não senti nada deste anti-semitismo disfarçado. A jovem e abandonada Lil Gammer, cujas formas percebi por baixo do fino vestido de algodão, dominou a minha puberdade. Fantasiei ter sido seduzido por ela. Ao mesmo tempo, a minha mãe, dividida entre o dever da boa comunista de amar e admirar a classe trabalhadora e o seu congénito ódio por esses perpetradores de progroms, queixou-se baixinho ao longo dos anos da falta de solidariedade dos Gammer, que lhe baralhava as lealdades e me comunicava a ideia de que eram a personificação da frieza gentia dos britânicos – pouco expansivos, empertigados, controlados, pedindo pouco, dando pouco e desprezando os estrangeiros. A efusividade da minha mãe embaraçava-os. Os nossos animados tópicos de conversa, as nossas discussões apaixonadas, a música clássica do rádio ou do gramofone ouvida através as paredes – não muito alto, tínhamos sempre cuidado – os numerosos amigos e famílias cujos pés passavam pela sua porta a caminho da nossa, tudo isto deve ter-lhes parecido incompreensivelmente irritante, inflamando a sua opinião de que era indesejável ter estrangeiros entre si. Nós éramos estrangeiros, e além do mais bem-dispostos... o que tornava tudo pior.
Um dia, a minha mãe contou-nos uma história do motorista Bil Gammer que de forma clara, nítida e, pela parte que me toca, irremediavelmente, resumiu a sua mentalidade:

"... Escuta, vou contar-te uma história. Na porta a seguir à minha, na porta a seguir ao sítio onde eu vivo há um motorista de autocarro. É de Hoxton, tem a minha idade, casado com dois filhos. Diz-me bom-dia, eu pergunto-lhe como está, dou rebuçados aos filhos dele. É a relação que temos. Não sei porquê, mas parece que ele tem medo de dizer de mais, sabes? Deus me perdoe de lhe pedir o que quer que seja! Não fazemos exigências um ao outro. Então, um dia, os tipos dos autocarros entram em greve. Ele ficou parado durante cinco semanas. Todas as manhãs, passo por ele e digo “Continua, amigo, força, vão ganhar.” Todas as manhãs o encorajo; digo-lhe que compreendo a causa deles. Tenho de me levantar mais cedo para vir para o trabalho, mas não me importo. Somos vizinhos. Somos os dois trabalhadores, ele fica content e. Então, um domingo, há uma marcha pela paz. Não penso que sirva de grande coisa mas vou, porque neste mundo um homem tem de mostrar que tem qualquer coisa a dizer. Na manhã seguinte, ele chega ao pé de mim e diz - e agora ouve isto –, pergunta-me “ontem foste àquela marcha pela paz?” E eu digo que Sim, fui à marcha pela paz ontem. Então ele vira-se para mim e diz, “Sabes que mais? Deviam ter deitado uma bomba em cima daquela malta toda! Foi uma pena,” diz, “que tivessem crianças lá com eles porque deviam ter largado uma bomba em cima daquela malta!” E sabes o que é que o estava a chatear? A marcha tinha cortado o trânsito e os autocarros não conseguiam andar! Ora eu não quero que ele diga que tenho razão, não quero que concorde com o que eu fiz, mas o que me apavora é que ele nem parou um instante para pensar este homem ajudou-me na minha causa por isso talvez, só talvez, haja qualquer coisa na causa dele. Vou falar com ele. Não! Os autocarros tiveram de parar por isso, ele diz larga uma bomba, em cima daquela malta! E devias ter visto o ódio nos olhos dele, como se eu lhe tivesse assassinado o filho. Um animal, era o que ele parecia. E o horror é que… é que há um muro, um grande muro entre mim e milhões de pessoas como ele. E eu penso… onde é que isto vai parar? O que é que se faz? E olho à minha volta, na cozinha, nas fábricas, nos malditos enormes edifícios que se erguem com todos aqueles escritórios e toda aquela gente lá dentro e penso, Porra! Penso, porra, porra, porra!” [PAUL, A Cozinha]

Quando penso nas classes trabalhadoras inglesas, não consigo evitá-lo, lembro-me dos Gammer: incultos, intolerantes, impiedosos, velhacos, não inspirando a mínima confiança.
Esta ambivalência em relação às classes trabalhadoras fervilha como sinais de perigo em todas as minhas peças.
[…]
No meu espírito não resta a mínima dúvida de que esta profunda ambivalência tem raízes naquela relação com os nossos vizinhos, os Gammer, e que se foi alimentando com variados conhecimentos da escola, da construção civil em que trabalhei como ajudante de carpinteiro e de canalizador, mais tarde da Força Aérea e, mais tarde ainda, das cozinhas de Norwich, Londres e Paris. Talvez não fosse então de admirar que em Junho de 1970, o dramaturgo John McGrath, numa crítica a Os Amigos para o efémero semanário Black Dwarf tivesse terminado desta forma:

"O que ele [Wesker] não deve fazer é iludir seja quem for, incluindo a si próprio, fazendo crer que é de alguma forma socialista, ou que as suas peças têm a mais pequena relação com qualquer tipo de teatro socialista."
(Pp. 127-148)

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