quinta-feira, 22 de março de 2007

Quanto Ouso - Capítulo Um

Um dedo na água
[...]
Primeira imagem – uma fotografia de escola. A Escola Infantil Judaica, em Commercial Street, Londres E1. Um professor e trinta e duas crianças – vinte e uma raparigas, onze rapazes - olham para a máquina. Só oito raparigas e quatro rapazes arriscam um sorriso. O chão é de soalho de madeira. Um relógio na parede, com números romanos diz que são 2h20 da tarde. Estou sentado na fila da frente, de pernas cruzadas, as mãos pousadas nos tornozelos. Os meus olhos estão abertos, cheios de malícia e inocência fingida. O lado direito da minha cara parece estar inchado. Não fui esmurrado. Tenho a língua na bochecha.
Memórias mais antigas – as irmãs de Joe, o meu pai. Tinha quatro: Rae, Sara, Billie e Ann. Amava-as e elas preocupavam-se comigo. Rae morreu em 1976 e as suas cinzas estão enterradas num cemitério judaico, cheio de lápides. [...] Sara [...] morreu em 1971 e as suas cinzas estão por baixo de uma árvore no jardim de casa da minha irmã, em Norfolk. Ann morreu em 1992 e as suas cinzas estão enterradas debaixo de um rododendro vermelho no jardim da minha casa na Gales. Quando comecei a escrever este livro, Billie estava num lar, a viver com sofrimento os seus anos finais de demência senil. Morreu por volta da página 300, no dia 8 de Outubro de 1993. Em 1979, gravei uma conversa com a Tia Annie em que lhe fiz perguntas acerca da minha mãe, durante a juventude. “Ach!” respondeu, “para que é que queres recordar? Seria demasiado doloroso.” Porquê? O que haveria acerca da minha mãe enquanto jovem que me magoasse? A Tia Annie foi muito evasiva.
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Della, a minha irmã, oito anos mais velha do que eu, cuidou de mim mas deixou-me cair de cabeça para baixo quando tinha cerca de dezoito meses. Ainda se vê a cicatriz. Estava a baloiçar-me nas pernas, como tinha visto a nossa mãe fazer, com as mãos por baixo da minha cabeça. Torci-me e escorreguei-lhe das mãos. Por cima da minha berraria, ela gritava: “Eu estava a segurar-lhe a cabeça! Eu estava a segurar-lhe a cabeça!” Quando a interroguei em 1979, recordou-me que eu era uma criança incontrolável. “Partiste as barras da tua cama para saíres. A verdade é que ninguém conseguia controlar-te excepto eu. Tínhamos uma boa relação. Tu ouvias-me...” Anos mais tarde, ela corrigiu o mito de me ter deixado cair de cabeça para baixo. “Segurei-te. Tu gritaste, eu fiquei assustada, mas não caíste no chão.”
- Então de onde vem a minha cicatriz?
- Não sei. Tiveste uma verruga, o médico tirou-ta e deixou a cicatriz... – Prefiro a história de ter sido deixado cair ao chão. Parece justificar muita coisa.
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A Tia Ann relembrou-me o que eu já sabia, que a minha mãe tinha tido um segundo filho, que teria sido meu irmão, por volta do final de Janeiro de 1925. “Mas quando tinha seis semanas, levaram-no para o Hospital de Londres, onde morreu de meningite. O meu pai [o avô de Wesker] tratou dos preparativos do funeral.”
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Fiz-lhe perguntas sobre o meu avô.
- O teu Zeyda (“avô” em iídische) era um alfaiate do exército quando sargento na Rússia. Fora do exército era alfaiate geral. Ajudou a fundar um dos primeiros sindicatos. Mas o seu coração não se sentia atraído para a arte do alfaiate, antes para o canto. O pai dele morreu quando ele era muito novo, e por isso teve de ser alfaiate. O meu pai transmitiu a sua bela voz de canto à Sara, ao Joe [pai de Wesker] e à Rae. A mim não. Não consigo grasnar uma nota. Era um estudioso do Talmude, o meu pai. Além de ter uma linda voz, era um estudioso do Talmude. Significava muito para ele.”
A minha mãe, Leah Wesker, Perlmutter de solteira, nascida em Gyergószentmiklos, na Transilvânia, no dia 28 de Julho de 1898, uma de onze irmãos, chegou a este país com onze anos. A primeira das mulheres fortes. No dia 2 de Março de 1948, com 50 anos, escreveu uma carta que nunca mandou. [...]

Meus Queridos Filhos,
Nada pior do que estar sozinha.
Sempre me deixaram sozinha. Não estou a ser melodramática, como diria a minha filha.
Foi sempre a minha fraqueza, nunca suportei a solidão.
Desde o final da minha infância, sempre gostei de estar com muita gente. O meu marido muitas vezes me deixou, durante os dolorosos anos do meu casamento, e o que me fez voltar para ele, de cada vez, foi o estar sozinha. Não há razão para me aborrecer agora, o meu Arnold foi-se durante apenas uma semana, para casa da minha filha, mas não suporto afastar-me dos meus filhos.
Chove e está um tempo miserável, acabei de chegar do trabalho e sinto-me terrivelmente deprimida. É sempre assim, especialmente hoje.
Vou sentir-me muito melhor quando receber um telegrama, a dizer que chegaram sãos e salvos
.

O meu pai, Joe, odiava o seu trabalho a coser à máquina para um alfaiate. Estava mais vezes em casa do que no emprego, preferindo enterrar a cabeça num livro. Tal como o meu pai, muitas vezes prefiro ler a escrever. Uma das fantasias que tenho é a seguinte: se ficar rico vou fazer uma licenciatura em filosofia, ou em história dos judeus ou história das ideias.
A minha mãe era baixinha, tinha cerca de 1,50m. [...] Era bonita e impetuosa e reservava o seu mau feitio para comportamentos horríveis – da irresponsabilidade do meu pai até à dura indiferença de patrões exploradores, da má-criação à arrogância, das mãos brutais às palavras brutais. Mas tinha um sorriso doce. Era ternurenta e carinhosa.
O meu pai não era muito mais alto; moreno, bem-parecido, de testa alta e olhos castanhos, pensativos. O seu limiar de tolerância para com os idiotas era muito baixo. Nascido senhor de uma inteligência natural, detectava o pensamento desleixado, a frase irreflectida e oca. Adorava a companhia e a conversa, e se bem que fosse ternurento como a minha mãe, sentia mais necessidade de ser amado do que de amar.
[...]
Entre os papéis da minha mãe estão uma série de extraordinários gatafunhos e rabiscos [...] Em conjunto com os seus escritos falam de um genuíno e poderoso impulso criativo que é negro e doce e brincalhão. Se bem que sem lado negro, o meu pai era também doce e brincalhão. Como é que duas pessoas tão doces conseguiram fazer-se mutuamente tão infelizes? Tragédia sua, minha herança.

(Pp. 1-6)

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